Grupo de Economia da Energia

Integração energética e resolução de conflitos na utilização dos gasodutos sul-americanos

In gás natural on 27/05/2013 at 01:00

Por Michelle Hallack e Miguel Vazquez

michelle052013A existência de gasodutos subutilizados na América do Sul é um fato recorrente. Os gasodutos de interconexão são construídos entre os países, mas devido às mudanças econômicas, institucionais ou políticas que ocorrem no período após a construção, a infraestrutura acaba sendo subutilizada.

Os gasodutos são caracterizados pela presença de “custos afundados”[1]. Nesses casos, é frequente a disputa pelas quase-rendas, o que gera situações de “hold up” – situações em que os carregadores poderiam agir de forma oportunista para diminuir a receita do proprietário do gasoduto. No caso dos gasodutos (com elevados custos afundados), o proprietário do gasoduto seria obrigado a permitir o uso da infraestrutura em um nível de preço abaixo do custo médio (até que o preço pago se iguale ao custo variável) incorrendo em uma perda, total ou parcial, do capital investido.

Para evitar esse efeito, se realizam frequentemente contratos de longo prazo, de maneira que os agentes negociem “ex-ante” os parâmetros das transações (preço e volume). Os contratos de longo prazo, então, serviriam para garantir a repartição dos riscos e benefícios da infraestrutura instalada.

Os contratos de longo prazo são mecanismos contratuais tão comuns quanto os incentivos dos agentes em quebrá-los com o decorrer do tempo. Portanto, o processo de garantia contratual ou renegociação são elementos centrais. A capacidade dos agentes renegociarem e redistribuírem os benefícios relacionados ao uso da infraestrutura, no entanto, é assimétrica entre as empresas puramente privadas e as empresas estatais. Isto pode ser entendido pela inexistência de um ambiente de renegociação contratual no âmbito da América do Sul.

No caso das empresas estatais, as renegociações acabam ocorrendo pela via política a través de acordos bilaterais estabelecidos entre os governos dos países envolvidos. No caso das empresas privadas, por sua vez, há uma maior dificuldade de renegociação contratual uma vez que seus interesses não conseguem ser facilmente colocados na pauta dos governos.

Se assumimos a premissa que a existência de infraestruturas sub-utilizadas ou não utilizadas é ineficiente para a sociedade, mecanismos para promover a utilização das mesmas e renegociar a apropriação dos benefícios deveriam aumentar a eficiência da indústria de gás (e da economia). Para tanto, o desenvolvimento de um organismo multilateral de renegociação parece um caminho que deveria ser melhor estudado e perseguido. Em meio às muitas organizações multilaterais de promoção da integração da América do Sul, especialmente no que tange a integração energética, alguma delas deveria ser capaz de desenvolver mecanismos reais de renegociação.

Compromissos bilaterais como a base da atual integração sul-americana de gás natural

Na América do Sul, as construções de infraestruturas, que interconectam as indústrias de rede de diferentes países, foram historicamente baseadas em compromissos bilaterais (binacionais). Sendo assim, os compromissos bilaterais podem ser considerados como a base do quadro institucional da construção das infraestruturas. Contudo, o uso das negociações bilaterais entre os Estados pode trazer dificuldades e custos tanto no que se refere ao planejamento da infraestrutura da região, quanto á participação de agentes privados.

A integração da indústria de gás natural na América do Sul é um exemplo que demonstra a necessidade de infraestruturas de rede. O comércio de gás, entre os países da América do Sul, depende de uma grande quantidade de investimentos em ativos específicos, mais precisamente nos gasodutos de transporte de gás entre os países. Esses investimentos possuem um elevado risco por natureza, uma vez que envolvem uma grande quantidade de ativos dedicados a uma atividade específica, que serão utilizados por longos períodos de tempo, e que cruzam as fronteiras de diferentes países, Hallack (2007).

Historicamente, diversos mecanismos com participação de interesses privados e públicos foram utilizados para minimizar os riscos dos investimentos. Esses mecanismos institucionais podem atuar:

a)      antes da decisão de investimento,

b)     durante a operação das infraestruturas, e

c)      para resolver os conflitos de interesses que tendem a ocorrer durante a vida útil da infraestrutura.

Podem-se agrupar os diferentes arranjos institucionais em pelo menos três níveis (como representado na figura 1).

Figura 1: Esquema da estrutura de governança

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Fonte: Elaboração dos autores

O primeiro é um marco legal que permita a exportação/importação do recurso natural e a construção da infraestrutura de interconexão. O segundo nível são os acordos sobre a atividade econômica: volume, preço e período. Neste nível se define como serão repartidos os riscos e os benefícios econômicos entre os agentes. O terceiro nível são os mecanismos de renegociação e resolução de conflitos. Estes mecanismos são os que definem o risco institucional (como as relações econômicas são afetadas em caso de mudanças imprevistas). Os mecanismos de renegociação podem ser explícitos, no quadro legal ou nos contratos comerciais, ou assegurados por mecanismos implícitos. Estes três níveis de estrutura de governança (marco legal, contrato e mecanismo de renegociação e resolução de conflitos) se relacionam entre si, e a coordenação entre eles pode ser mais o menos efetiva.

O marco legal estabelecido pelos países permite importação/exportação e estabelece o direito de construir os gasodutos de interconexão. Note que os marcos legais são sempre estabelecidos entre governos de forma bilateral. Como descreve Dávalos (2009), uma atribuição inegável dos Estados é a de construção de vinculações jurídicas mínimas que proporcionem uma base legal para comércio.

Na América do Sul não há um marco unificado para o comércio de gás natural. No âmbito da ALADI[2] se estabelece o interesse em criar relações preferenciais entre os países, porém, todos os tratados no âmbito internacional que permitem o comércio de gás natural se estabeleceram bilateralmente.

O mecanismo mais comum de estabelecer as condições econômicas de troca e transporte de gás (segundo grupo da figura 1) são os contratos de largo prazo. Isto inclui tanto os contratos de compra e venda quanto os contratos de transporte. Estes acordos estabelecem variáveis técnicas e econômicas incluindo quando e onde os volumes negociados devem ser entregues. Ademais, estes contratos permitem a divisão de riscos entre os agentes visto que definem os volumes e os preços.

O terceiro grupo de acordos (referido na figura 1) são os mecanismos de renegociação. Devido a grande longevidade dos acordos associados aos projetos de gasodutos, a probabilidade de que se precise renegociar é alta. Pode-se dividir as causas da renegociação em dois grande grupos: mudanças imprevistas na economia e mudanças institucionais imprevistas.

Os mecanismos de renegociação podem ser estabelecidos bilateralmente no interior dos contratos ou podem ser estabelecidos no marco legal abrangendo diferentes contratos. Ademais, além dos mecanismos de negociação explícitos, há também os mecanismos de negociação implícitos. Os mecanismos de negociação implícitos são mais difíceis de analisar, visto a menor existência de dados públicos. Contudo, na América do Sul, este parece ser o principal, se não o único mecanismo real de renegociação. Estes mecanismos, implícitos, frequentemente incluem negociações governamentais entre Estados.

Os gasodutos sul-americanos e os conflitos de interesse

Se por um lado é verdade que os riscos percebidos pelos agentes podem invalidar muitos dos possíveis investimentos, os ganhos esperados levaram a realização de diversos gasodutos de interconexão entre os países da América do Sul.

Os países que exportam gás através de gasodutos são: Bolívia, Colômbia e Argentina. A Bolívia exporta para a Argentina e para o Brasil, a Argentina exporta para o Brasil, para o Chile e para o Uruguai e a Colômbia exporta para Venezuela. Como não existe nenhum quadro institucional multilateral para o comércio de gás e nem para a construção de gasodutos, esta relações se baseiam em acordos bilaterais.

Tabela 1: Gasodutos de interconexão na América do Sul

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Fonte: Elaboração dos autores

Os gasodutos listados na tabela 1 possuem diferentes histórias, logo a categorização realizada simplifica os detalhes. Contudo a tabela nos permite ilustrar a presença de mudanças nas regras pré-estabelecidas em quase todos os gasodutos: sejam os gasodutos dedicados a importar gás argentino que tiveram seu fluxo reduzido devido a restrição as exportações; sejam os gasodutos de exportação de gás boliviano cujas tentativas de alterar volume e preço foram recorrentes em diferentes contextos históricos; seja o gasoduto entre a Colômbia e a Venezuela, que foi inicialmente construído para fazer a reversão de fluxos em 2012, mas houve alteração no contrato inicial[3].

Por outro lado, vale notar que a intervenção dos Estados nos projetos varia e diferentes organizações foram estabelecidas para o investimento dos mesmos. Vale notar também, que há uma grande diferença no que se refere á presença das empresas estatais (mais precisamente, o quanto que elas suportam do risco). Com a presença de empresas estatais, a renegociação se mostrou mais factível e a sub-utilização dos recursos das infraestruturas menor. O papel da Petrobras na relação do Brasil tanto com a Bolívia quanto com a Argentina, por exemplo, se mostrou como grande diferencial na resolução de conflitos.

Primeiro, vale notar a ausência de interrupção continua de fluxo de gás do maior gasoduto de importação do Brasil o Gasbol, mesmo com toda a mudança política e patrimonial na Bolívia. Houve momentos de conflitos, contudo, com o auxilio dos governos, a renegociação permitiu que o fluxo de gás se mantivesse. Segundo, vale ressaltar que o gasoduto Lateral-Cuiaba ficou anos sub-utilizado ou vazio até que a Petrobras entrasse para renegociar e coordenar a reutilização dos mesmos. Terceiro, discutindo sobre o gasoduto no sul do país, a volta de fluxo no gasoduto em 2013 está relacionado com a capacidade da Petrobrás em renegociar com os agentes e coordenar a utilização das infra-estruturas existente.

A correlação entre a forte presença de estatais e a capacidade de resolução de conflitos pode ser observada também nos outros países da América do Sul. Entendemos aqui resolução de conflitos como a capacidade de encontrar uma saída ao conflito de interesse que poderia, de outra forma, levar a sub-utilização ou o esvaziamento dos gasodutos construídos.

A melhora dos mecanismos de resolução de conflitos poderia aperfeiçoar a coordenação e diminuir as ineficiências geradas pelo mau uso das infraestruturas já instaladas. As consequências de longo prazo de uma melhor coordenação dos agentes poderia também impactar no longo prazo nas decisões de investimentos. Um mecanismo de resolução de conflitos multilateral deveria incluir os agentes privados, que até então tiveram pouco sucessos nas renegociações em caso de conflitos, assim como permitir um tratamento mais equivalente dos diferentes países da região.

Organismos multilaterais que potencialmente poderiam ter o papel de facilitadores (promotores) de renegociação

O intento de avançar nos acordos multilaterais até então se mostraram pouco exitosos. Como destacado até então, a construção, operação e resolução de conflitos em relação aos gasodutos se baseou principalmente em negociações e acordos bilaterais. Na ausência de negociações bilaterais entre os países, os investidores encontram muita dificuldade em recorre caso tenham conflitos com os Estados com os quais negociam. Nos casos de conflito entre um agente e o Estado vizinho, este possui três opções: 1) requerer ao seu país de origem que represente seus interesses e que apresente uma queixa ao país receptor; 2) litigar no país receptor (contudo nestes casos os Estados estão quase sempre protegidos pela clausula de imunidade soberana); 3) absorver os custos. Estes mecanismos são custosos e arriscados para as empresas que investem em ativos específicos e se tornam dependente das ações dos Estados para que possam remunerá-lo, como é o caso dos gasodutos na América do Sul.

Por outro lado proliferaram instituições que ambicionam facilitar a integração regional, podendo incluir parte ou todos os países sul-americanos. Dentre estas instituições a integração energética pode ser considerada o principal propósito ou um objetivo relevante. Há uma grande diversidade de instituições impactando sobre a integração energética da America do Sul. Estas instituições muitas vezes têm objetivos sobrepostos e possuem recortes regionais muito distintos. Dentre estas instituições destaca-se Associação Latino-americana de Integração (ALADI), Organização dos Estados Americanos (OEA), Associação Regional de Empresas de Petróleo e Gás Natural na América – latina e Caribe (ARPEL), Latino-Americana de Energia (OLADE), Comissão de integração energética (CIER), Iniciativa para a Integração da Infraestrutura Regional Sul-Americana (IIRSA), União de Nações Sul-Americanas (UNASUL), Mercado Comum do Sul (MERCOSUL), CAN (Comunidade Andina de Nações), CAF (Corporação Andina de Fomento) e o Conselho Energético Sul-Americano.

A contribuição destas instituições para integração pode ser através de diversos mecanismos, que classificaremos em três blocos: mecanismos de promoção do investimento (seja através da planificação ou do financiamento), mecanismos de coordenação de operação (regras harmonizadas ou comuns) e mecanismos de resolução de conflitos de interesse.

Algumas instituições objetivam e/ou realmente promovem em mais de um destes mecanismos. Contudo as instituições que atuam ou potencialmente poderiam promovem mecanismos de resolução de conflitos em relação ao uso de gasodutos: ALADI, OLADE, MERCOSUL, UNASUL[4].

Por outro lado, existe mecanismo de resolução de conflitos privados e internacionais que foram utilizados em diversos projetos de investimento internacional, as arbitragens internacionais. Este mecanismo tem como objetivo arbitrar entre o Estado e as empresas privadas. O uso deste mecanismo a fim de resolver conflitos internacionais entre os países sul-americanos restringiriam o campo das negociações entre os Estados e da solidariedade. Sendo, porém, o único mecanismo ativo de resolução de conflitos entre o investidor e os Estados.

Tabela 2: Organismos multilaterais que têm o potencial de atuar nas renegociações

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Fonte: Elaboração dos autores

Conclusão

A integração energética da América do Sul passa pelo desenvolvimento e uso das infraestruturas como os gasodutos. Este desenvolvimento, por sua vez, depende da superação de deficiências no que tange aspectos normativos e institucionais. Se por um lado se observa um grande numero de instituições com objetivam a integração energética, por outro lado, se observa um vácuo no que tange mecanismos efetivos de resolução de conflitos.

Os conflitos de interesse sejam por motivos econômicos ou políticos são parte da historia da indústria de gás natural. Na América do Sul estes conflitos levaram a ineficiências relativas ao uso dos gasodutos. Historicamente, observam-se as negociações dos governos diretamente ou através de suas estatais como o mecanismo mais utilizado na resolução de conflitos.

Isto nos levaria a nos perguntar se não estaria no momento de fortalecer alguma das instituições multilaterais já existentes para atuar na resolução de conflitos, facilitando-a, diminuindo seus custos para a sociedade, incluindo de maneira mais sistemática os agentes privados envolvidos e trazendo maior equilíbrio entre os países interessados.

Referencias

Dávalos, V. E. O. (2009). Raízes socioeconômicas da integração energética na América do Sul: análise dos projetos Itaipu Binacional, Gasbol e Gasandes Universidade de São Paulo.

Hallack, M. (2007). Mecanismos de governança do comércio de gás entre Brasil e Bolivia.Master thesis, UFRJ.

Garate P. C. (2006). La integracion energética da Latinoamérica. FlacsoAndes. Acessado 09/04/2013.http://www.flacsoandes.org/web/imagesFTP/10087.IntegracionEnergetica.pdf


[1] Os custos afundados são aqueles que são irrecuperáveis depois de realizados e como consequência e como consequência seu custo de oportunidade é próximo a zero

[2] A ALADI (Asociación Latinoamericana de Integración) traça princípios gerais de cooperação, mas não define marcos legais ou regulatórios comuns.

[3]A previsão inicial era de que o primeiro período que iria até 2012 o fluxo do gasoduto seria da Colômbia para Venezuela e num segundo momento obter o fluxo contrário (da Venezuela para Colômbia). Esta previsão foi alterada, e alteração de fluxo esta prevista atualmente para 2014.

[4] Outra instituição que poderia ser incluída neste grupo é a Comunidade Andina de Nações que assim como o MERCOSUL possui um tribunal já estabelecido para resolução de conflitos. Contudo, como demos prioridades ao estudo das instituições nas quais o Brasil participar, visto que estudo faz parte de uma analise mais geral da relação do Brasil e seus vizinhos. Para entender a amplitude da CAN e suas diferenças em relação ao MERCOSUL ver Garate (2006).

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