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A crise do setor elétrico: os problemas que permanecem embaixo do tapete

In energia elétrica on 14/04/2014 at 00:15

Por Roberto Pereira d’Araujo

roberto042014O verão de 2014 foi um dos mais quentes e secos da história. Seguramente, essa anomalia atingiu duplamente o nosso setor elétrico. Gastamos mais energia com refrigeração e estamos recebendo menos água nos rios. É bem possível que alguns analistas achem perfeitamente desculpável que estejamos passando por uma repentina crise e que seja natural ter que pagar uma dívida bilionária por geração térmica que já tangencia níveis macroeconômicos.

A anomalia da temperatura pode camuflar que, mesmo com hidrologias mais favoráveis, nós já estaríamos no caminho de gastos bilionários. A questão climática é um agravante da imprevisibilidade do nosso planejamento e não uma desculpa. Ao contrário de declarações oficiais, o nosso sistema está em desequilíbrio. Há muitas razões para essa situação, mas uma tem ficado ausente dos debates: A sofrível adaptação de modelos competitivos implantada aqui, que atropelou as nossas singularidades.

O que nos diferencia dos outros sistemas, mesmo os que dispõem de matriz renovável, é a possibilidade de guardar água. Isso altera tudo porque acrescenta um fator inexistente na maioria dos sistemas elétricos mundiais, o link entre passado, presente e futuro.

Gastamos a água estocada para gerar ou usamos outra fonte de energia? Se decidirmos “desestocar”, de que usina? Se tivéssemos usado outras fontes no passado, teríamos uma reserva maior hoje. Qual a decisão correta? Como devo agir com a reserva hoje visando o futuro? Essas são perguntas inexistentes em países cujo setor elétrico tem predominância térmica, onde a história é uma sucessão de presentes. O nosso, além do link temporal, nos impõe um operador monopolista e o desacoplamento da geração e comercialização, certamente um ponto fora da curva em mercados de energia.

Ora, então temos uma maldição? Ao contrário! É uma vantagem que só se torna um problema se a nossa capacidade de antecipar situações estiver embotada, pois nada acontece de repente aqui. O problema é que, mesmo com as evidências de que o nosso sistema físico tinha uma enorme singularidade, resolvemos entrar de cabeça na moda dos anos noventa que vendeu a imagem do “One size fits all” no setor elétrico.

As nossas mudanças institucionais, regulamentares e metodológicas foram de grande monta e, ao contrário do muitos pensam, seguiu uma linha comum nos cinco últimos governos. Apesar da propaganda, o modelo é o mesmo. A instabilidade e a insegurança são os sintomas. Abaixo, algumas bizarras características:

  1.        Relações comerciais baseadas num certificado virtual de energia por usina (Garantia Física) dependente de critérios de operação que não são parte de decisões dos proprietários da usina.
  2.       Mercado embaralhado com contabilização de diferenças entre o virtual e o real. Um parâmetro da operação é o paradigma (CMO). Diferença entre o valor mais baixo e mais alto atinge 5.100%. Aqui é possível ter que pagar R$ 822 por 1 MWh ou “ganha-lo de presente” por R$ 12.
  3.       Não há isonomia entre consumidores. Quando o sistema está em equilíbrio, há alta probabilidade que os preços do mercado fiquem muito baixos. Essa vantagem é capturada exclusivamente no mercado livre.

A lista se estenderia ainda mais. Por economia de espaço e por considerar que qualquer um desses pontos já deveria ser suficiente para uma profunda reforma, os resultados do modelo podem ser sentidos:

  •          Nas tarifas, que cresceram 80% desde 1995, já descontada a inflação.
  •          Nas incoerências entre planejamento e operação.
  •          Nos leilões genéricos que resultaram contratação de térmicas caras.
  •          No aumento de encargos pós reforma de 1995.
  •          Na inédita intervenção da MP 579, que resultará em burocracia e mais riscos para o sistema.

A situação que os consumidores brasileiros se encontram hoje é patética, pois estão ameaçados por um novo racionamento. A maldição climática é bradada pelas autoridades do setor, mas a tragédia já vinha sendo anunciada há pelo menos oito anos.

As curvas abaixo ilustram o aspecto estrutural mais importante do sistema, a perda de regularização. No eixo vertical o equivalente ao número de meses de consumo da reserva. Ele foi totalmente ignorado pela expansão e operação. A linha vermelha é a que se obtém descontando da carga a geração não hidráulica. Como as linhas de tendência são paralelas, percebe-se que até meados de 2012, nada era feito para aliviar a relação declinante reserva/carga.

roberto042014a

Acrescentar novos reservatórios que compensem o crescimento da carga nos imporiam enormes desafios. Apenas no período do gráfico, um novo Rio S. Francisco seria necessário para manter a relação de 2004.

Porque não se usou a complementação de outra fonte para minorar esse efeito? A estrutura tarifária brasileira em 2011, antes da MP 579, mostra que o peso do kWh (energia) numa conta média era de 31%, proporção baixa em relação a outros países. Os outros 69% (distribuição 26%, transmissão 5%, encargos 11% e impostos 28%) não dependem da configuração da geração, mas, evidentemente representam um “peso extra” se a escolha de despacho térmico fosse usada para minorar o efeito do gráfico.

A essa altura, tanto faz ter sido uma decisão política para evitar aumentos tarifários ou simplesmente porque o sistema de preços não indicava o uso de geração térmica. Como essas usinas estão contabilizadas na oferta, as hidráulicas é que geram a sua “garantia física”. A consequência está ilustrada no gráfico seguinte.

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De 2000 a 2012, apesar da proporção de hidráulicas no sistema ter se reduzido de 83% para 68%, a energia gerada permaneceu praticamente 90% hidráulica. Isso esvazia reservatórios.

Tendo um sistema onde as decisões presentes dependem das tomadas no passado, é inadmissível que se aceite um comportamento de preços de um mercado onde se encontra metade da indústria, como o mostrado no gráfico seguinte.

roberto042014c

A curva preta é o nosso PLD, Preço de Liquidação de Diferenças. Apesar do nome, ele é o paradigma do mercado. Na realidade é o próprio Custo Marginal de Operação, um parâmetro do operador que nada tem a ver com a questão comercial. A curva vermelha é o “spot price” do NORDPOOL, um mercado existente entre Noruega, Suécia, Dinamarca e Finlândia e que está colocado no gráfico apenas a título de comparação.

O que se deduz desta figura é que, ao contrário do exemplo do NORDPOOL, o nosso spot chega próximo de zero e também explode. Nos preços baixos as hidráulicas assumem a responsabilidade das térmicas e, em consequência do modelo de preços adotado, praticamente “doam” energia. Portanto, as perguntas: Quem pode comprar energia a esse preço? Qual o montante liquidado? Há sentido num mercado onde 1 MWh pode custar R$ 4 ou R$ 822?

Já que, a despeito de todo o efeito da redução da reserva, a decisão operativa preferiu manter a responsabilidade sobre as hidráulicas, porque não se captura parte dessa vantagem de PLD próximo a zero para formar um fundo que ajude a pagar as contas bilionárias? Como um sistema cujas decisões presentes dependem das passadas pode reservar as vantagens para um nicho do mercado?

O que está descrito no artigo é apenas um dos efeitos desse mimetismo mercantil. A própria política energética está impregnada desse sistema pseudocientífico. Leilões genéricos foram feitos com base em “índices custo benefício” também dependentes de critérios de operação que já mudaram e ainda irão mudar. Tudo isso apenas para poder declarar que as escolhas feitas na matriz elétrica vieram “do mercado”. Por conta do viés embutido no método, perdemos oportunidades em energia eólica, solar e nos “empanturramos” de térmicas caras.

Se o racionamento não ocorrer, será por obra e graça de São Pedro. Certamente, os que tentaram mostrar os defeitos estruturais serão ridicularizados. É lamentável que, por absoluta falta de diálogo, os verdadeiros problemas sejam, mais uma vez, colocados embaixo do tapete.

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