Grupo de Economia da Energia

A quem interessa a nova lei do gás?

In gás natural on 15/11/2010 at 00:15

Por Marcelo Colomer

Em 2009 foi aprovada pelo governo federal a lei 11.909 com o objetivo de definir o marco regulatório para as atividades de importação, regaseificação/liquefação, transporte e comercialização de gás natural. O desenvolvimento da nova estrutura regulatória foi motivado pelo reconhecimento da incapacidade da lei 9.478 em estimular a competição após o processo de reforma da indústria.

A importância do segmento de transporte na promoção da concorrência no setor de gás natural como um todo, o colocou como tema central da lei 11.909. A atividade de transporte de gás natural, assim como as demais atividades de rede, possui características que diferenciam e condicionam a dinâmica dos investimentos nesse segmento.

Em termos econômicos, a elevada especificidade[1] dos ativos associada à racionalidade limitada e ao comportamento oportunista dos agentes condicionam elevados custos de transação (MAKHOLM [2006, 2007, 2009], CODOGNET [2006] e COLOMER [2010]), que na ausência de garantias regulatórias, impõem elevados riscos aos investimentos. São esses elevados custos de transação, traduzidos em elevados riscos, que explicam a tendência da indústria de gás natural em integrar-se verticalmente.

Nesse contexto de especificidade da indústria de gás, a lei 11.909 buscou definir uma estrutura regulatória que incentivasse a entrada de novos agentes privados no segmento de transporte a partir da redução dos custos de transação (riscos) associados aos contratos de capacidade. De fato, a lei supracitada traz inovações regulatórias que reduzem grande parte dos riscos associados aos novos investimentos em ativos de transporte. Contudo, a incompletude da reforma, que manteve a estrutura industrial (market design) do setor de gás natural inalterada, impede que a redução dos custos de transação (riscos) se transmita de forma simétrica e homogênea para todos os agentes. Em outros termos, a estrutura industrial herdada do monopólio estatal cria uma grande assimetria de custos de transação entre a empresa estabelecida (Petrobras) e as empresas entrantes, de forma que as mudanças regulatórias trazidas pela nova lei mostram-se incapaz de estimular a entrada de novos agentes.

Inovações Regulatórias e Seus Impactos Sobre os Custos de Transação

 

Segundo Colomer [2010], as principais inovações regulatórias, trazidas pela lei 11.909, que contribuem para a redução de parte dos custos de transação são o estabelecimento da concessão como regime jurídico da atividade de transporte, a adoção de mecanismos de concurso aberto (chamada pública) com a assinatura de termos de compromisso, a regulação do livre acesso, a definição e limitação do escopo de atuação de cada agente do poder público e a consolidação jurídica do arcabouço regulatório.

O regime de concessão[2] desfruta de uma segurança jurídica maior do que o regime de autorização, o que faz dele um instrumento jurídico mais adequado para as atividades que exigem elevados investimentos em ativos específicos. Nesse sentido, a garantia do equilíbrio econômico e financeiro, o estabelecimento de contratos padronizados e a definição em lei dos direitos e deveres das empresas de transporte de gás natural reduzem os espaços para comportamentos oportunistas tanto por parte dos carregadores quanto por parte dos órgãos do governo. Nesse sentido, a mudança de regime jurídico trazido pela lei 11.909 tem o potencial de reduzir os custos de transação associados aos investimentos em ativos de transporte, estabelecendo maiores garantias[3] sobre o retorno do capital investido.

No que se refere ao novo mecanismo de alocação primária de capacidade, o dimensionamento prévio da demanda por capacidade e a exigência de assinatura de um termo de comprometimento pelos carregadores interessados na nova capacidade reduz os riscos de comportamentos oportunistas por parte dos carregadores. Isto é, o comprometimento prévio evita que, em condições de livre acesso, haja uma migração de carregadores dos gasodutos pioneiros, que naturalmente apresentam custos mais elevados [Colomer [2010] p. 48] para os gasodutos entrantes, comprometendo a recuperação do investimento realizado pela empresa pioneira.

Outros dois fatores de redução dos custos de transação trazidos pelo mecanismo de alocação primária da capacidade de transporte são a definição da tarifa máxima que poderá ser cobrada pelo transportador e a redução dos custos de negociação dos contratos de capacidade. O dimensionamento prévio da demanda permite que os potenciais investidores tenham o conhecimento ex ante das condições tarifárias enquanto que o processo de chamada pública elimina a necessidade de negociação da capacidade primária de transporte de forma bilateral com cada carregador.

Por fim, a contratação prévia da capacidade em bases firmes facilita o processo de financiamento através de mecanismos de securitização que permitam utilizar os contratos de recebíveis como garantias de contratos de financiamento.

No caso da regulação do livre acesso, o estabelecimento de regras e diretrizes, dos tipos de serviços que poderão ser ofertados pelo transportador e da tarifa a ser cobrada por cada serviço, estimula não só a competição no mercado de capacidade como também fornece as garantias necessárias ao investimento em novos gasodutos.

Em relação à definição dos espaços de atuação dos órgãos públicos, a delimitação do escopo de atuação dos diferentes agentes responsáveis pela regulação, planejamento e fiscalização da indústria de gás natural tem o potencial de reduzir o risco regulatório[4]. Em outras palavras, a definição do espaço de atuação de cada entidade pública reduz as chances das forças do Estado de atuarem de forma oportunista.

No que se refere à consolidação jurídica do arcabouço regulatório da indústria de gás, a lei 11.909, ao substituir as portarias e resoluções da ANP (instrumentos jurídicos precários e de fácil revogação) permite que o arcabouço regulatório da indústria de gás natural desfrute de uma maior estabilidade jurídica.

A análise da lei 11.909 mostra que o novo arcabouço regulatório da indústria de gás natural possui elementos capazes de reduzir os custos de transação associados aos contratos de capacidade de transporte. Contudo, como será visto a seguir, a transmissão dos efeitos da redução desses custos de transação não se dão de forma homogênea para todos os potenciais investidores em novos gasodutos.

 

O Market Design da Indústria de Gás Natural e a Assimetria de Custos de Transação

A separação jurídica das indústrias de petróleo e gás natural foi instituída pela lei 9.478 de 1997. Contudo, nem a lei supracitada nem a lei 11.909 fazem menção à restrição a participação cruzada entre agentes de diferentes segmentos da cadeia produtiva do gás natural.  Assim, embora a indústria de gás natural apresente-se juridicamente desverticalizada, na prática a Petrobras possui o monopólio di facto do setor.

Atualmente a Petrobras é responsável por 92% da produção, 100% da importação e controla, indiretamente através de suas subsidiárias e empresas coligadas, 97% da capacidade de transporte de gás natural do país (Petrobras [2010], ANP [2010], TRANSPETRO [2010] e TBG [2010]). No segmento de distribuição de gás natural, através da GASPETRO, a empresa é o acionista majoritário em 12 das 24 distribuidoras em operação além de possuir importantes participações acionárias em mais 7 empresas de distribuição (COLOMER [2010]).

Figura 1 – Brasil: Produção de Gás Natural (2008)Fonte: Elaboração Própria a partir de dados da ANP [2009] Figura 2- Brasil: Importação de Gás Natural (2008)Fonte: Elaboração Própria a partir de dados da ANP [2009]
Figura 3 – Participação Direta e Indireta dos Agentes nas Empresas DistribuidorasFonte: Elaboração Própria a partir de dados da ANP [2010], Transpetro [2010] e TBG [2010] Figura 4 – Brasil: Transporte de gás Natural (2009)Fonte: Elaboração Própria a partir de dados da Abegas [2010]

A posição dominante da Petrobras nos segmentos de produção, transporte, distribuição e comercialização faz com que a empresa seja ao mesmo tempo o principal transportador e o principal carregador de gás natural no mercado brasileiro. Nesse contexto de monopólio integrado, a redução dos custos de transação trazida pela nova lei do gás acaba por aumentar e consolidar as assimetrias de custos de transação entre a empresa estabelecida e os potenciais investidores em ativos de transporte.

Nesse sentido, dentro da estrutura industrial vigente no setor de gás natural, qualquer nova empresa de transporte que se instale no país necessariamente dependerá da Petrobras. Em outras palavras, a propriedade de 92% da produção e de 96% da importação de gás natural, assim como a importante participação da empresa no segmento de distribuição, explica a importância da Petrobras como principal carregador no mercado de gás natural brasileiro.

O duplo papel desempenhado pela Petrobras no segmento de transporte – carregador e transportador – faz com que os investimentos de novos agentes, principalmente no segmento de transporte, dependam da estabilidade das relações contratuais estabelecidas com seu principal concorrente, a Petrobras. Assim, mesmo considerando o potencial de redução dos custos de transação trazidos pelos mecanismos de chamada pública e pela assinatura dos termos de compromisso, a Petrobras pode adotar, ex ante, estratégias de detenção a entrada de novos agentes através de um boicote ao concurso aberto de alocação de capacidade. Isto é, a empresa, em seu papel de carregador, pode não manifestar, estrategicamente, seu interesse pela contratação da capacidade de transporte de um novo agente de forma a inviabilizar ex-ante o projeto de um novo gasoduto.

Mesmo, no caso de haver outros carregadores interessados, a elevada participação da Petrobras nos segmentos de produção, importação e distribuição pode fazer com que a não manifestação de interesse torne a tarifa de transporte demasiadamente elevada inviabilizando o projeto ou mesmo deslocando a demanda de capacidade para os dutos da Petrobras.

Conclusão

A análise tradicionalmente feita sobre a importância dos mecanismos regulatórios sobre as decisões de investimento em indústrias caracterizadas por elevadas especificidades de seus ativos físicos e por uma grande interdependência entre as decisões de investimento nos diferentes segmentos componentes de sua cadeia não consideram, devidamente, a importância da estrutura industrial (market design) sobre a transmissão dos efeitos da redução dos custos de transação entre os diferentes agentes da indústria. Em outros termos, em estruturas em que não haja uma efetiva separação do controle da propriedade ao longo de sua cadeia produtiva, os efeitos da regulação sobre os incentivos a competição, principalmente nos segmentos com características de rede, são reduzidos em função das barreiras à entrada criadas pela estrutura de mercado concentrada na figura na empresa estabelecida.

Pode-se concluir para o caso brasileiro, considerando a estrutura patrimonial vigente na indústria de gás natural, que a redução dos custos de transação trazida pela lei 11.909 beneficia principalmente a Petrobras nas transações ocorridas fora da sua estrutura verticalmente integrada, isto é, nas transações que envolvem outros carregadores que não a própria empresa. Assim, embora a lei 11.909 estimule os investimentos da Petrobras em novos gasodutos ao reduzir os custos de transação [5], ela não é capaz de reduzir as barreiras à entrada de novos agentes no segmento de transporte. Dessa forma, a nova legislação associada à incompletude do processo de reforma da indústria de petróleo e gás contribui para a concentração de mercado no setor de gás natural e para a consolidação da posição dominante da Petrobras.

Referências Bibliográficas

ANP. Boletim de Gás Natural no 6, Rio de Janeiro, 2009.

____. Anuário Estatístico 2001. Rio de Janeiro. Disponível em <http://www.anp.gov.br/>. Último acesso em: abril de 2010.

____. Anuário Estatístico 2002. Rio de Janeiro. Disponível em <http://www.anp.gov.br/>. Último acesso em: abril de 2010.

____. Anuário Estatístico 2003. Rio de Janeiro. Disponível em <http://www.anp.gov.br/>. Último acesso em: abril de 2010.

____. Anuário Estatístico 2004. Rio de Janeiro. Disponível em <http://www.anp.gov.br/>. Último acesso em: abril de 2010.

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____. Análise das Minutas do Contrato de Transporte e dos Termos e Condições Gerais Celebrados entre o Consórcio Malhas Sudeste Nordeste e a Petrobras. Nota Técnica 22/03/SCG, Rio de Janeiro, 2003. Disponível em < http://www.anp.gov.br/>. Último acesso em abril de 2010.

_____. Organização da Indústria Brasileira de Gás Natural e Abrangência de uma Nova Legislação. Rio de Janeiro, 2004. Disponível em <www.redetec.org.br>. Último acesso em maio de 2010.

_____. Regulamentação do Acesso ao Sistema de Transporte de Gás Natural no Brasil. In: VII Reunião Anual da Associação Ibero-Americana de Entidades Reguladoras de Energia. Oaxaca, México, 2004. Disponível em <www.ariae.org/>. Último acesso em maio de 2010.

COLOMER, M. Estruturas de Incentivo ao Investimento em Novos Gasodutos: Uma Análise Neo-Institucional do Novo Arcabouço Regulatório Brasileiro, Tese de Doutorado, UFRJ, 2010.

CODOGNET, M. L`analyse Économique des Contracts d`accès aux Réseaux dans les Réformes Concurrentiellles Gazières. Tese de Doutorado em Ciências Econômicas pela Université Paris XI, Paris, France, 2006.

GASNET, Custo de energia e gás afeta indústrias, Reportagem de 3/11/2010. Acesso disponível em http://www.gasnet.com.br/

MAKHOLM, J. D. Seeking Competition and Supply Security in Natural Gas The US Experience and European Challenge. In:1st CESSA Conference, Berlin University, Berlin, Germany, 2007.

____. Institutional, Transactional and Political Barriers to Competitive Gas Market in Europe: Europe’s Pipeline and Economics. In: Florence School of Regulation Workshop, Florence, Italy, 2009.

____. The Theory of Relationship-Specific Investments, Long-Term Contracts and Gas Pipeline Development in United States. In: Workshop on Energy Economics and Technology, Dresden University of Technology, Dresden, Germany, 2006.

TBG. Informações Técnicas. Disponível em < www.tbg.com.br/> Último acesso em Junho de 2010.


[1] Especificidade de ativos dedicados, especificidade temporal e especificidade geográfica.

[2] No Brasil, a lei 8.987 de 1995 define as regras dos regimes de concessão: formalização da concessão através de contratos previamente estabelecidos entre a concessionária e o poder concedente, a adoção de tarifas que garantam o equilíbrio econômico financeiro dos contratos de concessão e a definição ex ante dos possíveis espaços de intervenção do poder público. Ademais, o Artigo 23 da lei 8.987 define o modelo contratual que os regimes de concessão devem adotar.

[3] Além das maiores garantias, a lei 8.987 em seu artigo 28 faculta a concessionária ceder ao mutuante, em caráter fiduciário, parcela de seus créditos operacionais futuros de forma a facilitar a obtenção de financiamento para os investimentos necessários para o exercício de suas atividades.

[4] Desvios administrativos da legislação específica ou das condições constitucionais que sustentam o marco regulatório.

[5] Se considerarmos que a indústria de gás natural caracteriza-se por um monopólio verticalmente integrado di facto da Petrobras, a redução dos custos de transação trazida pela nova lei para a empresa estabelecida é pequena uma vez que a integração vertical já cumpre o papel de minimização dos custos. O que ocorre é que no pequeno número de transações que ocorrem fora da estrutura verticalizada, os custos de transação são reduzidos pela nova lei.

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  1. […] Doutor em Economia e Pesquisador Associado do Grupo de Economia da Energia AKPC_IDS += "7368,"; […]

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