Grupo de Economia da Energia

Bioeconomia em construção I – Os fatores de competitividade na bioeconomia

In biocombustíveis on 31/03/2014 at 00:15

Por José Vitor Bomtempo

vitor032014Esta postagem inicia uma nova série de artigos. A diferença fundamental é que, coerente com a linha de raciocínio que foi sendo desenvolvido ao longo da série O futuro dos biocombustíveis”, a nova série aborda explicitamente a dinâmica de uma indústria em construção. Essa indústria envolve tanto biocombustíveis quanto bioprodutos e biorrefinarias. A indústria, seus produtos e configurações têm sido abarcados no conceito mais amplo de bioeconomia. O que é bioeconomia?

Vínhamos usando o termo bioeconomia na série anterior para designar a inserção da indústria de biocombustíveis num contexto maior, mais complexo e mais próximo das transformações em curso. Mas valeria aqui registrar algumas definições mais conhecidas. Um dos primeiros registros do uso recente do termo é o da OCDE, 2009:

the bioeconomy can be thought of as a world where biotechnology contributes to a significant share of economic output. The emerging bioeconomy is likely to be global and guided by principles of sustainable development and environmental sustainability. A bioeconomy involves three elements: biotechnological knowledge, renewable biomass, and integration across applications.

Dois registros mais recentes complementam e dão mais foco à definição da OCDE. A Comissão Europeia, no documento Innovating for sustainable growth: a bioeconomy for Europe, 2012, define que:

bioeconomy … encompasses the production of renewable biological resources and the conversion of these resources and waste streams into value added products, such as food, feed, biobased products and bioenergy. Its sectors and industries have strong innovation potential due to their use of a wide range of sciences, enabling and industrial technologies, along with local and tacit knowledge.

 VTT, Centro de Pesquisa Tecnológica da Finlândia, também em 2012, explicita ainda mais as dimensões da bioeconomia relacionadas a uma indústria baseada em biomassa com a seguinte definição:

Bioeconomy can be perceived solely as operations related to the processing of biomass. VTT nonetheless views bioeconomy more widely: as a future industrial sector created out of traditional biomass refining. Characteristic for the operations of the sector are resource efficiency, maximization of value added, recycling, tight integration into energy production, and a capacity for cross-sector innovation. The bioeconomy framework is formed of the three pillars of sustainability: financial profitability; consideration of the environment; and serving society.

Para ressaltar a importância que a bioeconomia representa para a economia do século XXI não pode ser esquecido o documento americano, de 2012, National Bioeconomy Blueprint, que estabelece a visão e os objetivos estratégicos dos EUA nessa indústria.

Em síntese, o que resulta de todas as definições e documentos mencionados é a visão de que a exploração dos biorecursos é um processo de inovação central na dinâmica econômica das próximas décadas tanto pelas inovações específicas dessa exploração como pela capacidade de integrar um conjunto de inovações centrais para um possível ciclo de crescimento da economia.

Na postagem que encerrou a série “O futuro dos biocombustíveis”, alinhamos um conjunto de perguntas que pretendiam atualizar o foco de discussão, a nosso ver muito restrito quando dirigido apenas aos biocombustíveis. Vale recordar essas perguntas: Como desenvolver uma matéria prima viável e organizar uma cadeia de suprimento? Qual o futuro da cana? Ou qual a cana do futuro: a cana açúcar ou a cana energia? Como diversificar as matérias-primas para a indústria? Como as usinas atuais podem modernizar seus processos de primeira geração e ao mesmo tempo desenvolver e  incorporar as novas tecnologias? Como ultrapassar a fase do foco em etanol (ou biodiesel) e encaminhar a diversificação de produtos? O que será mais importante no futuro: o etanol ou a exploração da cana como biomassa de excelência? Como explorar a internacionalização da indústria e o interesse das empresas pelo Brasil? Como as políticas de apoio devem lidar com biocombustíveis e bioprodutos? 

Inseridas no contexto da bioeconomia, essas perguntas vão alimentar os artigos da nova série. Uma forma de estabelecer uma direção para esse debate é tentar partir dos fatores de competitividade que devem estar na base de desenvolvimento da bioeconomia. Numa versão inicial, a perspectiva brasileira deve levar em conta em suas políticas industriais e estratégias empresariais pelo menos seis atributos de competitividade.

A identificação dos atributos de competitividade parte da caracterização da bioeconomia como um setor em estruturação. Logo, esses atributos devem ser vistos como intimamente ligados a estratégias de inovação em setores emergentes, ainda em fase fluida. Nesses setores o nível de incerteza é elevado. No caso da bioeconomia, as variantes se multiplicam em matérias-primas, em tecnologias de conversão e em produtos, compondo um grande número de alternativas que um investidor/inovador pode adotar para montar o seu negócio e explorar o potencial de demanda existente.

Como ensinam os estudos em inovação, o processo de evolução da indústria leva a uma redução da variedade com algumas definições vencedoras entre as alternativas hoje colocadas. Essa situação coloca o tomador de decisões, em políticas públicas e também em estratégias empresariais, numa posição difícil. Essas decisões podem incorrer em dois riscos opostos. Num polo, a tentativa de distribuir as apostas em diversas alternativas, valorizando a indefinição dos designs dominantes, corre o risco de investir insuficientemente para desenvolvê-las. No outro polo, a escolha de uma alternativa a ser privilegiada pode levar à escolha de opções perdedoras e correr o risco de não ter retorno dos investimentos e esforços realizados.

Um primeiro atributo chave de competitividade seria assim a capacidade de captar a dinâmica do setor e orientar seus investimentos e políticas num ambiente de incerteza para a construção de uma base tecnológica sólida e, a partir daí, assegurar a competitividade futura na bioeconomia. Compreender a indústria é uma habilidade difícil no caso de indústrias emergentes. Exige capacitação científico-tecnológica mas também percepções de economia e gestão da inovação para entender a dinâmica da indústria. Esse entendimento necessita assim de forte conhecimento setorial associado a bases científico-tecnológicas. Esse é um atributo particularmente crítico para os órgãos de formulação de políticas industriais e financiamento, sem deixar de ser valioso para as decisões empresariais. A inexistência de experiência brasileira na participação em corridas tecnológicas reforça a importância desse ponto.

O segundo atributo seria certamente ligado às tecnologias propriamente ditas. Nesse ponto, a biotecnologia industrial aparece como base incontornável do futuro da indústria, principalmente em campos mais avançados e ainda sem experiência industrial expressiva como a biologia sintética. A capacidade de adaptação de outros conhecimentos tecnológicos tradicionais da química e da engenharia química, como por exemplo catálise e processos de separação, ganha também importância crescente. Ainda no terreno das capacitações tecnológicas deve ser destacado o desafio de pré-tratamento de matérias-primas. Nesse ponto, a busca de tecnologias capazes de disponibilizar de forma competitiva os açúcares dos materiais lignocelulósicos tem aparecido crescentemente como fator decisivo para o desenvolvimento da indústria. Um número crescente de projetos inovadores tem se dedicado especificamente a essa etapa inicial que se mostra um desafio crítico para a viabilidade e crescimento da indústria.

Ainda relacionado à matéria-prima, um terceiro atributo de competitividade deve ser destacado. Trata-se da estruturação da oferta de biomassa, atendendo os requisitos de produtividade, disponibilidade, qualidade, custo, performance ambiental, além da cadeia logística de suprimento.

No campo tecnológico, além do conhecimento tecnológico central que permite o desenvolvimento inicial em escala piloto, o scale up e a operação dos novos processos constituem atributos de competitividade importantes já que esses processos, principalmente os baseados em biotecnologia avançada, exigem novos conhecimentos de engenharia. Conceber e operar uma unidade industrial utilizando processos baseados em biologia sintética será um grande desafio para a indústria.

O campo dos produtos é igualmente desafiador. A capacidade de introdução e difusão de novos produtos é também um atributo de competitividade que tem crescido de importância e tende a ser decisivo para a consolidação da indústria. A compreensão da utilização dos produtos e o desenvolvimento de relações com os complementadores e end users estarão no centro dos requisitos para a introdução de inovações.  No caso dos novos produtos drop in, o custo adequado à substituiçãopode ser suficiente e reduzir muito o processo de desenvolvimento de novas aplicações. Entretanto, para os produtos novos não drop in, que podem vir a ser cada vez mais numerosos e importantes para a bioeconomia, o desenvolvimento de ativos complementares exigirá grande empenho dos produtores. Sublinhe-se que produtos novos, não drop in, podem ser justamente os mais interessantes para explorar o verdadeiro potencial da bioeconomiae obter vantagens competitivas sustentáveis.  Considerando a posição brasileira, a capacidade de desenvolver aplicações para novos produtos, muitos deles com características de especialidades químicas, pode ser um atributo chave para uma posição competitiva na indústria do futuro.

Por fim, um atributo resulta do ambiente competitivo em que diferentes perfis de empresas, de startups de base tecnológica a empresas estabelecidas de diferentes setores (petróleo e gás, química e petroquímica, papel e celulose, agronegócio e outros), tentam explorar suas competências chave e ao mesmo tempo buscam competências complementares dos diferentes perfis de empresas. A estruturação de alianças e associações para explorar esses efeitos de complementaridade é um atributo de competitividade desafiador tanto para as políticas quanto para as estratégias. No caso brasileiro, não se pode deixar de destacar a grande importância de explorar o processo original de internacionalização e o interesse das empresas pelo Brasil. Esse processo ocorre ainda numa fase de baixa maturidade da indústria e precisa ser explorado com políticas e estratégias originais e criativas. Nossa busca sempre foi de tentar alcançar os países desenvolvidos nas indústrias que eles lideravam e nas quais o Brasil era um entrante retardatário. Buscávamos o catching-up. Não é o caso na bioeconomia, uma indústria ainda em construção.

Esse conjunto de seis atributos de competitividade desafia países e empresas que tentam participar da construção da bioeconomia e ambicionam uma posição destacada no seu futuro. Esse processo de construção, com destaque para a inserção e participação do Brasil, será o objeto dos nossos próximos artigos.

Uma discussão dos atributos de competitividade que apresentamos nesta postagem pode ser acompanhada nos vídeos abaixo  sobre a mesa de debate Dilemas da oferta de biocombustíveis e o futuro da indústria baseada em biomassa do Seminário GEE2013 no  Canal GEE.

 

 

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