Grupo de Economia da Energia

O setor elétrico em transformação

In energia elétrica on 07/09/2015 at 00:15

Por Ronaldo Bicalho

bicalho092015A indústria elétrica no mundo hoje é marcada por mudanças radicais que alteram de forma profunda a maneira como essa indústria evoluiu em termos tecnológicos, econômicos, organizacionais e institucionais desde o seu nascimento no final do século dezenove.

No coração dessa transformação se encontra o processo de substituição dos combustíveis fósseis pelas fontes de energia renováveis na matriz elétrica. A importância desse processo nasce naturalmente do fato da geração de eletricidade ser a atividade que mais contribui para a emissão de gases de efeito estufa, colocando o setor elétrico no centro das políticas de mitigação dos efeitos do aquecimento global.

Esse protagonismo do setor faz com que na passagem de uma economia baseada em combustíveis fósseis para uma economia sustentada em energias renováveis – a chamada transição energética -, a mudança da matriz de geração elétrica na direção das renováveis – a chamada transição elétrica – desempenhe um papel essencial.

Embora a transição energética envolva atividades que vão além da geração de eletricidade, como, por exemplo, a indústria e os transportes, a transição elétrica é aquela sobre a qual as políticas energéticas dos países preocupados com o aquecimento global têm concentrado a sua atenção.

Nesse sentido, entender os desafios envolvidos na transição energética é, em grande parte, entender os desafios envolvidos na transição elétrica. Esse entendimento passa pela compreensão da radicalidade presente na mudança da maneira como se produz e se utiliza a eletricidade quando se amplia de forma significativa a participação das renováveis na matriz elétrica.

A principal fonte dessa radicalidade repousa sobre uma característica fundamental das energias renováveis que as distingue das tradicionais energias fósseis: a intermitência.

A intermitência altera de forma profunda a disponibilidade da energia presente nessas fontes e, por conseguinte, muda a maneira como se estabelece hoje o equilíbrio entre oferta e demanda de energia elétrica.

A utilização dos combustíveis fósseis como a principal fonte de energia para a geração de eletricidade permitiu ao setor elétrico oferecer ao consumidor um acesso à energia marcado por uma liquidez que definiu o padrão de consumo que vigora hoje. Essa liquidez significa um pronto acesso ao serviço energético provido pela eletricidade na quantidade, instante e local desejados por esse consumidor. Em outras palavras, pelo atual padrão de consumo de energia elétrica é possível ter acesso à energia na quantidade que se quer, quando se quer e onde se quer.

A disponibilidade e o controle, possibilitados pelo fato dos combustíveis fósseis serem estoques, em conjunto com a construção de capacidade instalada e sistemas de transmissão amplos e robustos, jogaram um papel decisivo na viabilização dessa liquidez; injetando uma flexibilidade à oferta capaz de acompanhar as variações da demanda e entregar a eletricidade ao consumidor nas condições temporais e espaciais definidas autonomamente por ele.

A indisponibilidade e a perda de controle introduzidas pelas renováveis afetam decisivamente as possibilidades de injetar liquidez no sistema nos moldes tradicionais, colocando em xeque o padrão de consumo vigente. Isso se deve ao fato de que as atuais fontes de flexibilidade utilizadas – que podem ser sintetizadas, no limite, na existência de ociosidade planejada de capacidade instalada, independentemente da forma como essa se manifesta (geração ou transmissão) – se demonstram crescentemente custosas quando se aumenta a participação das renováveis na matriz elétrica. Portanto, o problema não se resume ao custo da geração em si, mas o custo da manutenção da liquidez do sistema como um todo.

Isto significa que para manter o atual nível de liquidez do consumo sem uma explosão dos custos são necessárias profundas transformações na oferta. Transformações estas que reduzam a falta de disponibilidade e controle das renováveis, aproximando as condições de oferta dessas fontes às condições de oferta dos combustíveis fósseis.

Sem essas transformações, a ampliação da participação das renováveis na matriz implicará em profundas mudanças no padrão de consumo elétrico, com uma queda de liquidez que levará a um padrão de consumo no qual quantidade, instante e local serão definidos pela disponibilidade da fonte, e não mais pelo execício da vontade soberana do consumidor. Dessa forma, consumiremos a energia que houver, quando houver e onde houver.

Para evitar essas mudanças radicais no consumo, com seus altos custos em termos de desenvolvimento econômico e bem-estar, são necessárias mudanças tecnológicas, econômicas e institucionais significativas na oferta. Mudanças que permitam incorporar as renováveis sem modificar dramaticamente o padrão de consumo vigente e sem sacrificar o desenvolvimento econômico e o bem-estar social.

Dessa maneira, a introdução acelerada das energias renováveis na matriz elétrica não significa apenas a agregação de novas fontes e potenciais a um cardápio de opções tradicionais, que pouco afeta a operação e a expansão do sistema. Essa introdução, ao contrário, representa uma ruptura, cujo alcance está limitado à capacidade tecnológica, organizacional e institucional do setor de reduzir os efeitos da intermitência das renováveis sobre a liquidez do sistema.

No entanto, esses limites não são estáticos, mas estão em constante ampliação a partir da atividade inovadora no campo tecnológico, organizacional e institucional. Quanto mais intensa essa atividade, maior a possibilidade de ampliação da participação das renováveis sem os sacrifícios econômicos e sociais decorrentes dessa ampliação.

Portanto, para que a introdução das energias renováveis na matriz elétrica seja sustentável em termos econômicos, políticos e sociais são necessárias inovações radicais na maneira como o setor elétrico escolhe as suas tecnologias e define a sua base técnica, na maneira como ele organiza a sua cadeia produtiva e as suas empresas, e, assim como, na maneira como são definidas pelo Estado as políticas públicas relativas a ele.

Sem essas inovações, a transição elétrica não é sustentável e, por conseguinte, a própria transição energética também não. Sem essas inovações, a gestão dos conflitos econômicos, políticos e sociais gerados pela transição fósseis/renováveis se torna muito mais difícil em seu manejo e incerta em seus resultados, pressionando sobremaneira as instituições e o debate político.

Assim, parafraseando Lampedusa, para que as coisas permaneçam iguais, é preciso que tudo mude . Para que a eletricidade continue desempenhando o papel de fator essencial no desenvolvimento econômico e no bem-estar, no contexto da transição energética, é preciso que o setor elétrico mude radicalmente. Sem essa mudança, a transição elétrica não se sustenta, e, sem ela, a própria transição energética não se viabiliza nem econômica, nem política, nem socialmente.

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