Grupo de Economia da Energia

A crise do setor elétrico é estrutural

In energia elétrica on 16/05/2018 at 18:29

Por Ronaldo Bicalho

bicalho052018O setor elétrico brasileiro tem um problema definitivo e grave: o esgotamento do seu modelo tradicional de operação e expansão.

Nesse modelo, baseado na exploração do nosso generoso potencial hidrelétrico, os reservatórios jogaram um papel crucial na regularização das vazões dos rios e, portanto, na redução da exposição das usinas hidrelétricas ao risco hidrológico de não chover o suficiente e, em consequência, não se ter a água necessária para gerar a energia elétrica desejada.

A partir do momento em que fatores técnicos, ambientais, sociais e políticos passaram a restringir a construção de novos reservatórios, a redução da capacidade de regularização e, em consequência, a crescente exposição ao risco hidrológico passaram a fazer parte da agenda de problemas estruturais do setor elétrico brasileiro.

A perda de capacidade de coordenação, advinda do processo de fragmentação institucional iniciada pelas reformas dos anos 1990s, e o peso cada vez maior da intermitência na geração, via a crescente participação das novas fontes renováveis (eólica e solar) e das novas usinas hidrelétricas a fio de água (sem reservatório), aceleraram a deterioração do modelo.

Dessa maneira, sem os reservatórios para fazer face ao risco hidrológico, a operação e expansão do sistema elétrico brasileiro perdeu o elemento que estruturou historicamente a sua construção técnica, econômica, organizacional e institucional.

Essa perda coloca no centro da mesa a gigantesca tarefa de encontrar um novo modelo de operação e expansão para o setor elétrico do País. Nesse contexto, os conflitos gerados a partir do completo descompasso entre os princípios do modelo e a realidade concreta do setor se intensificam e desaguam em uma judicialização que demonstra claramente a falência das instituições setoriais.

Portanto, o que temos pela frente não é um problema conjuntural associado a um passageiro regime de chuvas desfavorável ou a ineficiências empresariais específicas de entes públicos ou privados para o qual a mudança do humor de São Pedro ou do gestor resolve. O que temos pela frente é um baita problema estrutural que exige uma mobilização de monta, da qual não se vê sequer um esboço no horizonte de medidas das atuais autoridades responsável pelo setor. E mais preocupante, também não se vê nas diversas pautas específicas dos agentes setoriais, marcadas por um particularismo simplesmente suicida. Não há barcos para todos, senhores.

O interessante a notar é que tudo isso acontece em um momento muito particular do setor elétrico no mundo em que o tradicional modelo de operação e expansão baseado no uso dos combustíveis fósseis também está em xeque.

Cabe notar que esse esgotamento não ocorre em função da exaustão das reservas de combustíveis fósseis, mas em função da impossibilidade da continuação da utilização desses combustíveis; face à necessidade de mitigar os efeitos econômicos e sociais da mudança climática, reduzindo o aquecimento global via a diminuição das emissões de CO2 advindas da queima desses combustíveis.

Sem os combustíveis fósseis, a operação e expansão do setor elétrico no mundo também perde o elemento essencial que estruturou historicamente a sua construção técnica, econômica, organizacional e institucional.

O traço comum a reservatórios e combustíveis fósseis é o fato deles serem estoques. Estoques que viabilizam um controle sobre a disponibilidade de energia que funda a relação que temos com a energia desde a revolução industrial. Estoques que se traduzem em uma liquidez energética que permite que tenhamos a energia que queremos, quando e onde a queremos.

Sem esses estoques, a construção dessa liquidez se torna muito mais complexa, demandando arranjos técnicos, econômicos, organizacionais e institucionais novos e, principalmente, radicalmente distintos dos atuais.

Desse modo, se quisermos manter a nossa atual relação com a energia elétrica temos que mudar radicalmente a forma como estruturamos técnica, econômica e institucionalmente a oferta dessa fonte de energia; mudando inclusive a própria natureza da relação entre ofertantes e demandantes nesse mercado.

Parafraseando o velho príncipe de Salinas, para permanecerem como estão as coisas terão que mudar.

A consequência imediata desse quadro internacional é a falta de referência, de modelos e de padrões que possam guiar a transição elétrica brasileira. Cabe lembrar que essa falta de referências é justamente um traço intrínseco a momentos de transformação radical como aquele vivido pelo atual estágio evolutivo do setor elétrico no mundo.

Nesse sentido, pode-se afirmar seguramente que o setor elétrico enfrenta no Brasil, assim como no mundo, o seu momento mais desafiador.

O desafio aqui é pensar um novo modelo de operação e expansão para o setor elétrico brasileiro no contexto das grandes transformações que estão acontecendo no setor elétrico do mundo, requalificando os nossos atributos sob um novo paradigma. Requalificação que envolve, por exemplo, um novo papel para os nossos reservatórios que, em tempos de intermitências, representam uma das maiores e mais integradas capacidades de estocagem de energia elétrica do mundo.

Desse modo, ao longo do caminho de construção do nosso setor elétrico nós juntamos garrafas que podem ser muito úteis no novo caminho que o setor elétrico no mundo começa a trilhar: reservatórios (estoques), hidrelétricas (centrais flexíveis) e transmissão (integração espacial – diversidade climática).

A propósito, considerando que metade dessas garrafas está hoje nas mãos da Eletrobras – 50% dos reservatórios; 45% das hidrelétricas; 47% da transmissão -, pode-se afirmar que uma parte crucial dos ativos estratégicos para a construção do futuro do nosso setor elétrico está em jogo na privatização da Eletrobras.

Trocando em miúdos, o problema do setor elétrico é grave e necessita uma mobilização significativa de recursos para enfrentá-lo.

Essa mobilização não é observada no contexto atual de ações dos agentes setoriais e do Estado brasileiro. Os primeiros se agarram a uma pauta de sobrevivência de interesses específicos e imediatos que dificulta sobremaneira a coordenação política necessária à construção de consensos mínimos que permitam a sustentabilidade de um novo modelo institucional para o setor. O segundo subordina a pauta setorial a uma agenda política, marcada pelo caráter urgente e de curto prazo da luta pela sobrevivência diária do atual governo, que inviabiliza qualquer possibilidade de uma ação institucional de longo prazo que estruture um conjunto de planos e ações que aponte minimamente caminhos sustentáveis para enfrentar os enormes desafios da nossa infraestrutura elétrica.

Nesse contexto, a tentativa de privatização da Eletrobras é a síntese dessa perda de rumos do setor elétrico brasileiro, reunindo medidas desconexas que juntam fios desencapados com a perícia de um eletricista de porre, oportunismo político e interesses econômicos obscuros costurados pela esperteza política das velhas raposas felpudas, sob o aconchegante manto da completa irresponsabilidade com o futuro do País. Assim, à sombra de uma modernidade fajuta e provinciana e de uma prestidigitação de punguista de feira prepara-se uma conta absurda para ser paga, ao final, pelo consumidor e pelo contribuinte; em nome dos quais os maiores absurdos são perpetrados.

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