Grupo de Economia da Energia

Bioeconomia: as regras do jogo

In biocombustíveis on 28/04/2014 at 00:15

Por Miguel Vazquez

miguel042014Em uma postagem anterior, Jose Vitor Bontempo iniciou uma série dedicada a estudar a construção da bioeconomia. Esta postagem se propõe levantar algumas reflexões sobre a importância do desenho institucional para entender e orientar o desenvolvimento dessa indústria em construção.

A bioeconomia é um campo no qual numerosos jogadores interagem de forma complexa, mas essa não é uma situação estranha na vida cotidiana. Por exemplo, ir para o escritório envolve depositar a sua confiança em que um grande número de indivíduos se transladando a grandes velocidades vão respeitar as regras de circulação. O fato é que uma grande parte das nossas atividades está baseada na nossa capacidade de compreender as situações, de compreender o que pode e não pode ser feito; em resumo, as regras do jogo.

Uma das principais complexidades vem do fato de que essas situações não são fixas e individuais, elas dependem fortemente do contexto. Eu já fui reprendido por atravessar a rua com o semáforo fechado em Berlim, e exatamente pelo contrario (esperar a que o semáforo estivesse verde) no centro do Rio de Janeiro. O que pode e não pode ser feito depende do contexto.

Essa interação está intimamente relacionada com o que Elinor Ostrom chamou de action arenas. Isto é um tabuleiro de jogo para desenvolver um arcabouço teórico que descreve como as definições de regras, os atributos dos bens e os atributos das comunidades impactam nas decisões dos agentes envolvidos. Em outras palavras, compreender atividades econômicas (entre outras) vai além de compreender os aspetos tecnológicos. O objeto de estudo é a interação entre um número potencialmente grande de agentes. A pergunta então seria: a interação dos agentes deve nos preocupar no contexto da construção da bioeconomia? A minha resposta é sim: as regras contribuem para definir a evolução de uma indústria e as escolhas feitas por ela. E as regras dependem fortemente do contexto.

Embora o conceito de biorrefinaria seja recente, podemos observar algumas biorrefinarias que já funcionam na prática: usinas produtoras de açúcar, etanol e bioeletricidade a partir da cana de açúcar; ou de óleo, biodiesel e outros produtos da soja. Neste contexto, as biorrefinarias podem ser pensadas como instalações industriais para converter biomassa em produtos químicos e combustíveis. A cadeia de produção que inclui as biorrefinarias inclui também o setor agrícola e a logística de distribuição. Ou seja, se pode pensar em uma grande diversidade de organizações na indústria, que dependem por sua vez das regras do jogo estabelecidas.

Definir quem é que decide as regras, e decidir quais regras escolher, é determinante no processo de construção da bioeconomia. Se tivéssemos a oportunidade de mudar as regras do jogo em 1870 e impedir a evolução da Standard Oil, mudaríamos? Discutiremos um pouco usando um exemplo simplificado. Para facilitar a argumentação, consideremos que uma biorrefineria é simplesmente uma instalação que desenvolve dois produtos químicos:

  • O produto A, que representa, por exemplo, um produto químico de alto valor (vA = 10)
  • O produto B, que representa, por exemplo, um combustível para transporte com relativamente baixo valor (vB = 6)

Os produtos são demandados por dois jogadores. Os dois têm acesso à instalação, mas não decidem a produção. Para simplificar, os jogadores escolhem entre:

  • 2 unidades  (ud) do produto B
  • 1unidade do produto A e 1 unidade do produto B

Não consideramos o resto das opções para simplificar o jogo. O volume de cada produto que pode ser produzido na biorrefineria depende da combinação concreta dos produtos que vai ser produzida. Em outras palavras, a produção do produto A subtrai da capacidade da biorrefineria uma quantidade menor que a produção do produto B. Por exemplo, se a demanda (a soma das escolhas dos jogadores) é 4ud de B, a capacidade da biorrefineria é de 4ud. Se a demanda é de 3ud de B e 1ud de A, a capacidade é de 2ud de B e 1ud de A. Enfim, se a demanda é 2ud B – 2ud A, a capacidade é 2ud A. O jogo associado ao problema está resumido na tabela 1, e o equilíbrio está representado pelo quadro cinza. Observamos então um dilema do prisioneiro: os jogadores devem escolher entre mais produtos ou produtos mais valorados. Ou seja, os jogadores não se coordenam eficientemente.

Tabela 1.

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Esse resultado, contudo, depende de uma regra básica de alocação: dar prioridade à produção do produto A (a biorrefineria sempre produz a demanda de produto A). Consideremos uma modificação: agora a biorrefineria sempre produz a demanda do produto B. Então, o novo jogo fica representado na tabela 2.

Tabela 2.

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Pode-se observar que o dilema do prisioneiro não existe mais. Mas a lição relevante desses jogos simplificados não é que o dilema desaparece, é que as regras que definem o jogo têm uma grande importância na coordenação da indústria. Mas nem sempre é possível definir as regras do jogo de forma que todos os jogadores estejam satisfeitos. Isto pode ser mostrado simplesmente com a introdução de jogadores heterogêneos. Por exemplo, o jogador 1 é o mesmo que nos jogos anteriores, mas o jogador 2 tem novos valores para os produtos:

  • O produto A vale vA = 30
  • O produto B vale igual vB = 6

Se a regra de alocação é a primeira (prioridade para a produção do produto B), o jogo fica:

Tabela 3.

miguel042014c

Se a regra de alocação é a segunda (prioridade para a produção do produto A), o jogo fica:

Tabela 4.

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Qual é o melhor jogo? A resposta, logicamente, depende de se esta perguntando ao jogador 1 ou ao jogador 2. Então, será que o jogador 1 está disposto a pagar por induzir o primeiro jogo? Provavelmente. E o jogador 2 está disposto a pagar por induzir o segundo jogo. Portanto, outra solução seria deixar que os jogadores negociassem qual é o melhor conjunto de regras. Nesse caso, as regras de uso da biorrefineria não são mais definidas pelo dono senão pelos jogadores. Tem mais uma opção possível: que cada jogador construa uma biorrefineria particular.

A primeira conclusão que pode ser extraída é que o uso da biorrefineria depende das regras do uso. As consequências na dinâmica de uma indústria em construção não podem ser desconsideradas. Mas, neste caso, ao contrário do primeiro exemplo, não estamos enfrentando um dilema do prisioneiro. Ambos os equilíbrios estão maximizando o bem-estar do jogo correspondente. O que estes exemplos mostram é que, no processo de cálculo da capacidade, se estão induzindo jogos diferentes.

Os exemplos anteriores, considerando só uma pequena parte da cadeia de valor (a biorrefineria), mostra que as regras do jogo, e quem as define, são elementos centrais para determinar os possíveis resultados da evolução da bioeconomia. Mas não são os únicos potenciais exemplos. Entre as matérias-primas que estão sendo discutidas se encontram as algas e o lixo. Ambos os setores são claros candidatos a padecer “commons’ dilemmas”, portanto a enfrentar problemas de coordenação similares aos descritos anteriormente. A organização da ação coletiva nesses setores vai muito além da dicotomia tradicional entre fazer ou comprar.

Os exemplos anteriores, enfim, são representações simplificadas de diversas possibilidades de organização da bioeconomia. Será preferível a organização baseada em umas poucas empresas verticalmente integradas? É a concorrência no mercado a única forma de coordenar horizontalmente a indústria, ou tem espaço para as cooperativas? Qual é o mecanismo mais adequado para coordenar a ação coletiva? A compreensão dos elementos atrás da grande diversidade de arranjos institucionais observados é fundamental para desenhar as instituições que devem orientar o desenvolvimento da bioeconomia. Os desafios que essa atividade apresenta são significativos. Não é cedo para começar a enfrentá-los.

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