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O imbróglio da GásLocal (GNL Gemini) no CADE: defendendo a concorrência ou garantindo o monopólio?

In gás natural, GNL on 18/07/2016 at 11:10

Por Diogo Lisbona Romeiro

diogo072016Há dez anos, a GásLocal, joint venture entre Petrobras e White Martins, comercializa gás natural distribuído sob a forma liquefeita para consumidores localizados em um raio de até mil quilômetros da planta de liquefação instalada em Paulínia (São Paulo), a única em operação no país. Concebido em 2004, com investimento total de US$ 51 milhões, o empreendimento tinha por finalidade suprir consumidores localizados em áreas ainda não atendidas pelas distribuidoras estaduais de gás canalizado. Com capacidade de liquefação de 440 mil m³/dia de gás natural, a Petrobras buscava alavancar o mercado consumidor doméstico, procurando alternativas para destinar a oferta de gás natural contratada com a Bolívia, tendo em vista o aumento gradual da capacidade contratada e a elevada cláusula firmada de take-or-pay (80%).

A GásLocal, nome fantasia da GNL Gemini, tem 40% de capital da Petrobras (através da Gaspetro) e 60% da White Martins. As três empresas formaram um consórcio (Consórcio Gemini), no qual a Petrobras participa como fornecedora do gás, a White Martins como proprietária e operadora da planta de liquefação, inaugurada em 2006, e a GásLocal como distribuidora e comercializadora do gás natural liquefeito (GNL). O gás natural é fornecido à planta de liquefação por ramal direto de transporte do Gasoduto Bolívia-Brasil (GASBOL), onde é liquefeito para ser transportado por caminhões com tanques criogênicos. Atualmente, a GásLocal dispõe de uma carteira de ao menos trinta clientes, dispersos em sua área de atuação (São Paulo, Rio de Janeiro, Espírito Santo, Minas Gerais, Goiás e Distrito Federal).

A comercialização e distribuição de gás natural por dutos no Brasil, por força constitucional, é serviço público de responsabilidade e prerrogativa dos estados. As concessionárias estaduais detém, assim, monopólio legal em suas áreas de concessão. Como a distribuição de gás por dutos para uma dada área geográfica constitui um monopólio natural, em que a escala mínima de eficiência é alcançada apenas com a provisão por uma única empresa, o monopólio legal se justifica. Porém, este não se confunde com o direito de comercialização de gás natural, que pode ser distribuído a granel, liquefeito (GNL) ou comprimido (GNC), por outras empresas.

A participação da Petrobras no Consórcio, sintomática de sua posição dominante em toda a cadeia do gás, viabilizou o projeto, mas suscitou, desde os seus primórdios, um imbróglio de caráter regulatório-administrativo-judicial, que se arrasta e se avoluma ao longo do tempo.

Imbróglio administrativo-regulatório-judicial

Enquanto que para a White Martins, a liquefação e comercialização de gás natural é uma diversificação horizontal de suas atividades, para a Petrobras representa uma integração vertical adicional, acendendo um alerta para o órgão de defesa da concorrência. O fornecimento de gás para a planta de liquefação, que constitui a contrapartida da Petrobras no Consórcio, é um dos pontos mais sensíveis do projeto, provocando controvérsias regulatórias e temores anticoncorrenciais.

Como a legislação brasileira não distingue os serviços de transporte e distribuição por características técnicas, como diâmetro e pressão dos dutos, abre-se espaço para divergências quanto à esfera de competência regulatória acerca do fornecimento de gás para a planta. A ANP aprovou o projeto e autorizou o fornecimento via ramal de transporte direto. Entretanto, a Comissão de Serviços Públicos de Energia do Estado de São Paulo (CSPE), agência estadual da época (atual ARSESP), contestou que o fornecimento de gás em área de concessão estadual caracteriza atividade de serviço público de distribuição, passível de regulação tarifária pela agência estadual e de margem de distribuição da Companhia de Gás de São Paulo (Comgás). Por se tratar de conflito federativo, a matéria foi remetida ao Supremo Tribunal Federal (STF), que ainda não se pronunciou definitivamente sobre o tema. Porém, em 2006, a ministra Carmem Lúcia proferiu decisão cautelar garantindo a prerrogativa estadual, até que se obtenha julgamento final pela Corte. Entretanto, a decisão liminar do STF ainda não foi executada, tendo em vista a impossibilidade regulatória de a Comgás operar dutos de transporte e da alegação da Petrobras de que a distribuidora não estaria disposta a construir duto de distribuição para abastecer a planta (CADE, 2016).

Embora o marco legal – desde a Lei do Petróleo (Lei nº 9.478/1997) até a Lei do Gás (Lei nº 11.909/2009), passando pelas resoluções da ANP – aponte para a liberalização do setor, à exceção da distribuição por dutos, na prática a Petrobras desfruta de posição monopolista em praticamente todos os elos da cadeia do gás natural. Ao longo dos anos 2000, a Petrobras atravessou franco movimento de integração vertical para frente na cadeia, adquirindo participação em distribuidoras e termelétricas. Na época da constituição da joint venture, a Petrobras (Gaspetro)[1] apenas não detinha participação acionária em cinco distribuidoras – Cigás (AM), CEG (RJ) e as três concessionárias de São Paulo (Comgás, Gás Brasiliano e Gás Natural SPS).[2]

Figura 1 – Área de atuação da GásLocal (Locus de concorrência na época da sua constituição)

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Fonte: Adaptado da GásLocal

Neste contexto, o projeto foi submetido em 2004 ao Conselho Administrativo de Defesa da Concorrência (CADE), que tem por objetivo preservar ambientes competitivos e desencorajar condutas anticoncorrenciais dos agentes. Em 2006, o CADE autorizou o Ato de Concentração,[3] impondo algumas restrições (remédios) a serem seguidas.[4] A Petrobras contestou judicialmente os remédios prescritos e obteve a suspensão judicial das restrições impostas pelo CADE. No mesmo ano, em 2007, a Comgás solicitou que fosse investigada prática de subsídios cruzados e discriminação de preços no fornecimento de gás para o Consórcio, instaurando-se, assim, Averiguação Preliminar no CADE.[5] Em 2014, o Tribunal do CADE decidiu pela abertura de Processo Administrativo para apuração de infrações à ordem econômica e pela própria revisão do Ato de Concentração anteriormente autorizado.

Em 2015, a Superintendência-Geral do CADE, no âmbito do processo em andamento, emitiu Medida Preventiva determinando o Consórcio a cessar conduta discriminatória, firmando contrato isonômico de fornecimento de gás para a planta. Neste ínterim, tramita ação movida pela White Martins no Superior Tribunal de Justiça para impugnar o Processo Administrativo e a revisão do Ato de Concentração em andamento. O CADE obteve liminar favorável a sua atuação, mantendo a vigência da Medida Preventiva, mas ainda não foi dada decisão cautelar final pelo STJ e o Consórcio ainda não atendeu a determinação, alegando desentendimento entre as sócias. Em meio a processos e reviravoltas administrativas, incertezas e embates regulatórios e judicialização crescente, o caso permanece aberto à discussão no CADE.

Figura 2 – Imbróglio administrativo-regulatório-judicial

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Fonte: Elaboração própria.

A análise do Ato de Concentração

As principais discussões travadas no âmbito da análise do Ato de Concentração giraram em torno (i) da adequada delimitação do mercado relevante em questão; (ii) dos possíveis prejuízos decorrentes da captura de clientes-âncoras das distribuidoras, comprometendo a expansão da malha de gasodutos; e (iii) da possibilidade de prática de subsídios cruzados e tratamento discriminatório a rivais não integradas, com fornecimento de gás natural a custos predatórios (ou mesmo nulo) ao Consórcio.

A delimitação do mercado relevante é essencial para a análise preventiva e prospectiva da defesa da concorrência, uma vez que as dimensões “produto” e “geográfica” delimitam o locus de concorrência, isto é, os produtos substitutos e os agentes existentes e potenciais. Em geral, os requerentes, que pleiteiam o ato de concentração, procuram induzir o órgão de defesa da concorrência à definição mais favorável possível do mercado relevante, por mais infactível que se apresente, mascarando os possíveis danos ao ambiente concorrencial.

Nesta direção, o Consórcio defendeu que o GNL é o produto relevante e que o raio de mil quilômetros da planta de liquefação em Paulínia determina a área geográfica. Segundo parecer da Secretaria de Acompanhamento Econômico (SEAE), do Ministério da Fazenda, o Consórcio alegou que: “o GNL possui um custo elevado de produção e distribuição, de modo que não compete diretamente com o gás natural distribuído por meio de dutos”, porém, “mesmo considerando esse custo adicional, permanece competitivo diante de outras fontes energéticas, como a gasolina, o diesel ou Gás Liquefeito de Petróleo (GLP)”. Diante desta estratégia, a própria SEAE observou que “ainda que o GNL e o gás natural entregue por dutos apresentem custos de operação diversos, ambos se apresentam como o mesmo produto final, o próprio gás natural, sendo, portanto, concorrentes no logo prazo”. Em resposta, o Consórcio ponderou que se o mercado relevante fosse estendido para o gás natural, os seus substitutos também deveriam ser abrangidos. (SEAE, 2005)

Por um lado, o gás natural tem como peculiaridade a inexistência de mercado cativo, já que em todas as suas utilizações pode ser substituído por outro energético. Deste modo, a definição da dimensão produto deveria abarcar, em tese, os seus substitutos. Por outro, os diversos modais de transporte do gás natural não constituem propriamente uma competição intraenergética, mas refletem possibilidades distintas de monetização dos recursos.

Em geral, como discutem Almeida e Colomer (2013), para que a comercialização de GNL seja rentável, é necessário que o volume comercializado e a distância percorrida sejam significativos, tendo em vista o elevado CAPEX incorrido e as significativas perdas envolvidas no processo (10% a 15%). Em circunstâncias opostas, com distância e volume reduzidos, a monetização do gás pode ser obtida através do transporte de gás natural comprimido (GNC). Em situações intermediárias, a distribuição por dutos se constitui como o modal mais adequado e eficiente, gerando externalidades positivas ao permitir maior acesso de consumidores à infraestrutura de rede, que não seriam contemplados por outros modais. Portanto, na presença de malha de gasoduto, não é esperado, em circunstâncias usuais de mercado, que o GNL ou GNC compitam com a distribuição canalizada. De mesmo modo, dentro do raio usual de atuação do GNC, em geral de 200 km, a competição via GNL só se justificaria pela maior quantidade transportada.

Figura 3 – Modais de Transporte de Gás Natural: Rivalidade ou Complementariedade?

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Fonte: CADE (2016)

Verifica-se, assim, no curto prazo, mais complementariedade entre os diversos modais de transporte do que propriamente competição no mercado. A distribuição a granel em locais ainda não atendidos pela malha de gasodutos pode ser benéfica para a sua expansão, ao propiciar um consumo incipiente do gás, deslocando energéticos substitutos. Assim, no longo prazo, a chegada dos dutos já contaria com algum mercado consolidado. De fato, os projetos estruturantes de “gasodutos virtuais”, empreendidos pelas próprias distribuidoras, se apoiam nessa lógica de prospecção.

Entretanto, dependendo das condições de fornecimento, como cláusulas contratuais e preços praticados, esta abertura de mercado pelo gás distribuído a granel pode-se reverter em fechamento de mercado aos concorrentes atuais (foreclosure). Por esta perspectiva, no longo prazo, a competição entre os modais ocorreria pelo mercado. Se por um lado o gás canalizado desloca o gás transportado a granel, em princípio mais custoso, por outro este pode impedir a expansão da rede de gasodutos ao capturar clientes-âncoras – grandes consumidores capazes de ancorar elevados investimentos em infraestrutura, imprescindíveis para a expansão.

Na análise original do Ato de Concentração, em 2006, a interação com o GNC não foi contemplada. O Relator do Processo definiu o mercado relevante como o de gás natural dentro do raio de mil quilômetros da planta, ponderando que a inclusão do GLP, tal como pleiteado pelo Consórcio, não alteraria o resultado da análise, dada a posição dominante da Petrobras também neste mercado.

Quanto a possível captura de clientes-âncoras, prevaleceu o entendimento do Relator de que a questão era pertinente à esfera regulatória e à política energética, dada a transferência de bem-estar implícita entre agentes. Assim, não caberia à autoridade antitruste impedir o acesso de cliente-âncora a outro modal energético pela justificativa de inviabilizar o financiamento da expansão futura da rede.[6]

Vislumbrou-se, entretanto, a possibilidade concreta da Petrobras praticar preços predatórios (abaixo do custo médio) ao gás natural fornecido ao Consórcio, proveniente do contrato com a Bolívia (GASBOL). A essência da operação residiria no aproveitamento do gás natural contratado, pago e não consumido pela Petrobras na época. Como grande parte da disponibilidade de gás contratada destinava-se ao lastro da geração termelétrica, previstas para operarem esporadicamente em momentos hidrológicos adversos, a Petrobras poderia monetizar parte do gás não consumido via “venda” ao Consórcio Gemini. Deste modo, a Petrobras teria incentivos a repassar as “sobras” de gás não consumido para o Consórcio a preços irrisórios, ou mesmo nulo, refletindo o custo de oportunidade nulo do gás vinculado ao take or pay não consumido. Em contraste, as rivais distribuidoras estaduais não-integradas arcariam com preços elevados de gás e pesadas cláusulas de take-or-pay.[7] Deste modo, a possibilidade de subsídios cruzados (price squeeze) entre os segmentos não-competitivo (distribuição por dutos) e competitivo (distribuição de GNL) penalizaria não apenas o mercado das distribuidoras, como os potenciais entrantes (não-integrados) ao mercado de GNL.

As próprias requerentes informaram incialmente que o gás natural fornecido pela Petrobras não seria objeto de precificação ou contrato, pois se configurava como contrapartida da Petrobras no Consórcio. Posteriormente, face às críticas da ANP e do CADE, foi estabelecida a remuneração do gás no “Anexo 6” ao Acordo Operativo do Consórcio Gemini.

Estruturado de modo a tornar possível o não pagamento efetivo do gás consumido, o “Anexo 6” foi objeto de muitas críticas e preocupações, na medida em que: (i) não prevê cláusulas de take or pay e ship or pay; (ii) considera descontos de perdas e consumo interno da planta de liquefação no custo do gás – vantagem significativa tendo em vista as elevadas perdas no processo de liquefação em contraposição às pequenas no transporte por dutos; (iii) estabelece reajuste de preço pelo IGP-M, e não por cesta de óleo, como usualmente utilizado com as distribuidoras; e (iv) institui pagamento de contas por escala de prioridade e uma conta gráfica do gás, para permitir compensação de prejuízos.

O “Anexo 6” indica que a participação da Petrobras no Consórcio foi estabelecida de forma a repassar o gás sem custo para a planta. Esta estratégia é vital para a viabilidade do projeto, tendo em vista os elevados custos incorridos para liquefação e transporte do GNL. Assim, o que provavelmente tornava o projeto minimamente viável era a possibilidade de liquefazer um gás a custo de oportunidade próximo de zero e comercializá-lo em regiões não atendidas pelas distribuidoras. Se este custo deixa de ser desprezível, o projeto torna-se insustentável.

A Procuradoria do CADE (ProCADE) reconheceu que a operação proporcionava a entrada de um novo player, estimulando a competição setorial, mas ponderou que “a operação pode resultar um potencial prejuízo à expansão da rede de gasodutos pelas concessionárias estaduais que participarem do mesmo mercado, eis que submetidas a regras regulatórias diferenciadas, o que poderia prejudicar a natureza pró-competititiva da operação, o que sugere a adoção de restrições”.

A Comgás, como terceira interessada, solicitou que os contratos de venda de GNL da GásLocal tivessem obrigatoriamente prazo indeterminado e ausências de cláusulas de take-or-pay e de multa por rescisão contratual. Entretanto, o Relator não acolheu estas solicitações. Por um lado, considerou razoável a necessidade de contratos de longo prazo com cláusulas de take-or-pay, tendo em vista os vultosos investimentos incorridos pelo Consórcio. Por outro, já havia firmado entendimento de que a questão da captura de clientes-âncoras pertencia à esfera regulatória ativa e não à reativa (defesa da concorrência), não devendo interferir em condições contratuais de fidelização.

Entretanto, seguindo recomendação da ProCADE, o Relator indicou aprovação do Ato de Concentração com restrições, o que foi acatado pelo Conselho do CADE. Em linhas gerais, em formulação de restrições inéditas, determinou-se a publicidade do controverso “Anexo 6”, das demonstrações contábeis da GásLocal e dos preços, prazos e volumes dos contratos com seus clientes. O Consórcio recorreu da decisão alegando confusão entre transparência e publicidade, condenando a divulgação de dados estratégicos e privados. No âmbito administrativo do CADE, acolheu-se a crítica em parte, restando estabelecido que o órgão só divulgaria os dados agregados por cidade. Já no âmbito judicial, o Consórcio saiu vitorioso. A Justiça, sem adentrar no mérito da decisão do CADE, deferiu liminar, que transitou em julgado sem recursos do CADE, suspendendo os remédios propostos por falta de razoabilidade.

O processo administrativo e a revisão do Ato de Concentração

Em 2007, a Comgás entrou com representação na Secretaria de Direito Econômico (SDE), do Ministério da Justiça, para que fosse investigada prática de subsídios cruzados e discriminação de preços no fornecimento de gás para o Consórcio, instaurando-se Averiguação Preliminar no CADE. Os pareceres da SDE, do ProCADE e do Ministério Público Federal (MPF) recomendaram o arquivamento do processo, pois identificaram que o saldo da Conta Gráfica do Gás (“Anexo 6”) havia sido integralmente zerado, caracterizando a remuneração do gás pelo Consórcio. Entretanto, em 2013, a relatora do caso votou pela abertura de Processo Administrativo para apuração de infrações à ordem econômica e pela própria revisão do Ato de Concentração, justificando que a análise isolada da conta gráfica por si só não afastava a existência de indícios concretos de condutas anticompetitivas.

A discriminação de preços ou de condições contratuais não constitui necessariamente prática anticompetitiva, uma vez que é legítimo o tratamento desigual frente a agentes ou circunstanciais desiguais. Como observa o CADE (2016), para que “se configure ilícito antitruste, é necessário que: (i) o agente econômico discriminador possua posição dominante no mercado relevante de origem; (ii) haja prejuízo, ainda que potencial, à livre concorrência; e (iii) não existam justificativas objetivas para a prática que demonstrem racionalidade econômica legítima na conduta”. Sob esta perspectiva, no processo em andamento, a Superintendência-Geral do CADE (SG) conclui pela configuração da infração de tratamento discriminatório antinconcorrencial, recomendando o julgamento do caso pelo Tribunal.

Em linhas gerais, para fundamentar o seu entendimento, a SG (i) refina a definição do mercado relevante em análise; (ii) consolida os indícios do tratamento discriminatório; (iii) associa a discriminação ao exercício abusivo de posição dominante no mercado; (iv) caracteriza os danos decorrentes à concorrência; e (v) afasta qualquer justificativa legítima para a prática.

Na presente revisão, adota-se definição distinta para o mercado relevante. Compreendendo que a competição ocorre pelo mercado, embora a área de atuação relevante seja delimitada pelo raio de mil quilômetros da planta de liquefação, a área de atuação crítica seria dada pelos locais potenciais de expansão da malha de gasodutos que são supridos pelo GNL. Assim, embora o market share da GásLocal possa ser irrisório frente ao gás comercializado pelas distribuidoras locais (principalmente face à impugnante Comgás), o poder de mercado é muito mais significativo, posto que a competição dá-se pelo mercado e que a captura de clientes-âncoras impediria a expansão desejável da rede, fechando o mercado das distribuidoras.

A análise reitera o entendimento que o Consórcio foi estruturado de modo a garantir um custo de gás favorável pela Petrobras, o que é respaldado inclusive por nota técnica recente da ANP (2015). A discriminação de preço permitiria, inclusive, que a GásLocal competisse com a tarifa regulada de gás canalizado para determinadas faixas de consumo, o que não seria esperado em condições usuais de mercado.

A SG conclui que, a partir do custo subsidiado de gás, o Consórcio seria capaz de oferecer preço final em troca de cláusulas de fidelização mais severas, capturando clientes-âncoras. A fidelização perderia a sua função de compensação de custos afundados e serviria, em última instância, “como mecanismo de fechamento de mercado despido de eficiência econômica e concorrencial”.

Adota-se, portanto, entendimento diverso ao qualificar a questão do cliente-âncora como pertinente a esfera da defesa da concorrência. O dano se estabelece essencialmente pela captura de clientes-âncoras e pelo consequentemente fechamento de mercado, fruto de competição espúria por discriminação anticompetitiva sem justificava econômica legítima.

Para fundamentar a Medida Preventiva, que determinou o fim da discriminação de preço de gás ao Consórcio, a SG acatou pedido da Comgás que apontou que quatro clientes-âncoras, localizados em quatro diferentes cidades paulistas, foram capturados pela GásLocal com preços próximos à tarifa regulada, inviabilizando a expansão da malha para as regiões.

Neste ínterim, a White Martins impugna judicialmente o Processo Administrativo e a revisão do Ato de Concentração em andamento, sob a justificativa que de se trata de matéria já julgada a aprovada pelo órgão. A Petrobras, no entanto, não respalda a ação judicial, indicando que a exigência de rever o custo de fornecimento do gás é bem-vinda na atual conjuntura.[8]

Comentários finais: defendendo a concorrência ou garantindo o monopólio?

De início, deve-se ponderar que embora a Lei permita o reexame do Ato de Concentração e que os remédios prescritos sequer foram aplicados, é inusitada, se não inoportuna, a revisão de matéria julgada com motivação preventiva para empreendimento que já opera há dez anos.

A explanação do caso evidencia que se trata de matéria nebulosa e complexa, apoiada em linha tênue entre regulação ativa e reativa (defesa da concorrência), suscitando contestações judiciais recorrentes. Esta ambivalência é típica em indústrias de infraestrutura parcialmente liberalizadas, que ficam sujeitas à regulação ativa em elos de monopólio (em geral, distribuição) e à regulação reativa em elos liberalizados. A interação entre essas duas dimensões é essencial para que os benefícios da competição não sejam contrabalançados por exercícios de poder de mercado nos elos de monopólio; e para impedir que empresas integradas abusem de suas posições dominantes, restringindo a competição e ampliando o seu poder de mercado (POSSAS et al., 1998b).

As delimitações regulatórias são fundamentais para incutir a competição desejada na cadeia, reduzindo barreiras à entrada e permitindo acesso a terceiros à infraestrutura consolidada. Neste aspecto, como observa a ANP (2015), a Lei do Gás (Lei nº 11.909/2009) permitiu um retrocesso ao não garantir acesso a terceiros interessados aos terminais de GNL, preservando barreiras à entrada no mercado doméstico de gás.

A abertura de segmentos potencialmente competitivos é condição necessária, mas não suficiente para introduzir a competição nos setores de infraestrutura, dada a presença de custos afundados em ativos específicos (sunk cost) e a possibilidade de comportamentos oportunistas das firmas estabelecidas, que podem impor barreiras à entrada instransponíveis.

A abertura incompleta destituída de desverticalização de fato, como a brasileira, que não estabeleceu limites à participação acionária nos diferentes segmentos, reforçam barreiras estruturais e dificultam a competição. Neste contexto, a atuação do órgão de defesa da concorrência torna-se crucial para coibir praticas discriminatórias anticompetitivas, que aumentem custos ou restrinjam a entrada de rivais não integradas.

Entretanto, como observam Possas et al. (1998b), o possível ganho competitivo de prevenir eventual abuso de poder de mercado da empresa integrada dominante em segmentos desregulados, seja por preços predatórios, subsídios cruzados ou foreclosure, deve ser contrastado com a desvantagem de excluir do mercado um importante competidor potencial.

Na análise da revisão do caso em tela, a SG observa que o subsídio cruzado é a tese defendida para justificar o financiamento da conduta de discriminação, mas com ela não se confunde, concluindo que se a prática for financiada por qualquer outro meio (inclusive via prejuízo da Petrobras), permanecem os danos causados e a sua caracterização antinconcorrencial. Deste modo, o ponto crucial para a análise antitruste – tanto para a revisão a posteriori de medidas preventivas, quanto para o Processo Administrativo de caráter punitivo – reside na captura de clientes-âncoras e de suas consequências concorrenciais.[9]

A captura de clientes-âncoras refere-se ao fenômeno reconhecido pela literatura como creamskimming competition (VISCUSI et al., 2005), em que a empresa entrante absorve os segmentos mais lucrativos (creme), deixando para a empresa regulada os segmentos menos atrativos (leite), comprometendo a eficiência produtiva e a possibilidade de financiar objetivos não econômicos, como a universalização de acesso ao serviço. Assim, ao capturar grandes consumidores em novas localidades, a GásLocal comprometeria a expansão da rede, deixando apenas os segmentos menos lucrativos às concessionárias.

Na análise original do Ato de Concentração, o CADE considerou ser esta uma questão pertinente à esfera regulatória ativa, já em sua revisão, vislumbrou-se danos anticoncorrenciais, reconhecendo a competência antitruste. É provável, no entanto, que diga respeito a ambas as esferas regulatórias, ativa e reativa.

Se por um lado, a participação da Petrobras no Consórcio pode resultar em discriminação anticompetitiva, aumentando o seu poder de mercado, por outro, não se deve negligenciar a contestação do monopólio legal das distribuidoras estaduais de gás canalizado pelo GNL. Neste sentido, deve-se investigar a plausibilidade da captura de clientes de fato âncoras à luz da tentativa de estender o monopólio legal em área de concessão ao direito exclusivo indevido de comercialização do energético, restringindo oferta a consumidores que ainda não dispõe de opções. No caso em tela, foi alegado um cliente-âncora para cada cidade, o que suscita a questão se não há outros clientes e segmentos que não possam ser efetivamente prospectados, capazes de diluir o custo fixo da chegada de dutos à região. Assim, temendo prejuízos à concorrência, pode-se estar reduzindo a contestabilidade de monopólios e, na prática, aumentando a sua área de atuação para além das prerrogativas legais.

Como indicam Possas et al. (1998a), “a opção pela competição nos setores de infraestrutura pode se revelar o melhor meio de promover os objetivos de eficiência econômica, contanto que as condutas das empresas estabelecidas sejam monitoradas pelas agências reguladoras e de defesa da concorrência. Trata-se de usar a concorrência como mecanismo de identificação dos limites do monopólio natural”.

A perspectiva de “sobra” de gás natural no mercado doméstico, o que provavelmente motivou o empreendimento da GásLocal, transformou-se em contexto de escassez de gás com baixo custo de oportunidade. Os prováveis prejuízos da Petrobras no Consórcio e a ambivalência de sua consequência para o ambiente competitivo apontam que a questão deveria ser equacionada, em grande parte, em esfera privada societária. A intervenção regulatória (ativa ou reativa), decorrido tanto tempo de operação, poderia se restringir à proibição de condições contratuais de fidelização que subvertem a lógica econômica, garantindo a migração à rede.

A nova conjuntura da indústria do gás natural e da Petrobras, como analisado por Almeida e Colomer (2016), demandam resposta regulatória mais ampla, profunda e conjunta da regulação ativa do setor e da atuação reativa e preventiva da defesa da concorrência.

Referências:

Almeida, E.; Colomer, M. (2013). “Indústria do Gás Natural: Fundamentos Técnicos e Econômicos.” Synergia.

Almeida, E.; Colomer, M. (2016). “Indústria do gás natural no Brasil: a reforma necessária para a saída da Petrobras”. https://infopetro.wordpress.com/2016/06/29/industria-do-gas-natural-no-brasil-a-reforma-necessaria-para-a-saida-da-petrobras/

ANP (2015). Nota Técnica nº 26/2015/CDC.

CADE (2016). Nota Técnica nº 12/2016/CGAA4/SGA1/SG/CADE.

POSSAS, M.; FAGUNDES, J.; PONDÉ, J. (1998a). Defesa da Concorrência e Regulação. Revista de Direito Econômico, janeiro/julho, número 27.

POSSAS, M.; FAGUNDES, J.; PONDÉ, J. (1998b). Defesa da Concorrência e Regulação de Setores de Infraestrutura em Transição. ANPEC.

SEAE (2005). Parecer nº 06202/2005/DF.

VISCUSI, W.; VERNON, J.; HARRINGTON, J. (2005). Economics of regulation and Antitrust. The MIT Press; 4th edition.

Notas:

[1] Em dezembro de 2015, a Petrobras vendeu 49% da Gaspetro para a Mitsui Gás e Energia do Brasil, por R$ 1,9 bilhões, no âmbito de seu atual plano de desinvestimento.

[2] Atualmente, das 27 distribuidoras de gás existentes no país, a Petrobras não detém participação em 7: Cigás (AM), Gás do Pará (PA), Gasmig (MG), CEG (RJ), Gás Natural Fenosa (SP), antiga Gás Natural SPS, Comgás (SP) e MTGás (MT).

[3] Ato de Concentração nº 08012.001015/2004-8.

[4] O órgão de defesa da concorrência atua ex ante, em caráter preventivo, em fusões, aquisições e joint ventures que possam resultar em poder de mercado prejudicial ao ambiente competitivo; e ex post, em caráter punitivo, em circunstâncias de infrações cometidas à ordem econômica. Deve-se observar que com a alteração do marco legal da defesa da concorrência, em 2011, com a substituição da Lei nº 8.884/1994 pela Lei nº 12.529/2011, a atuação preventiva do CADE tornou-se mais efetiva e célere, ao condicionar a consumação da operação à aprovação do órgão.

[5] Averiguação Preliminar nº 08012.011881/2007-41, posteriormente convertida em Processo Administrativo.

[6] A questão do cliente-âncora foi levantada pela Comgás durante a análise original do Ato de Concentração, impugnando a operação como terceira interessada: “A oferta de descontos para alguns poucos clientes-âncoras, agindo como free-riders, já seria suficiente para erigir a barreira à entrada pretendida (…) é razoável supor que os objetivos de expansão e consolidação monopolista vertical e horizontal no país para distribuição de gás no longo prazo tende a ser mais importante do que o objetivo de manter bons negócios com a Comgás”.

[7] Nota-se que as distribuidoras se constituem como rivais pela delimitação do mercado relevante, ao definir a dimensão do produto pelo gás natural. Foi com intuito de afastar preocupações concorrenciais dessa natureza, que as requerentes argumentaram no sentido de enquadrar o GNL como mercado relevante distinto do gás natural.

[8] Segundo reportagem “Petrobrás entre em conflito com sócia” (Estado de São Paulo, 3/5/2016), o fornecimento de gás subsidiado já teria causado prejuízos de R$ 400 milhões à Petrobras. http://economia.estadao.com.br/noticias/geral,petrobras-entra-em-conflito-com-socia,10000048963

[9] Deve-se notar que se o Consórcio atendesse apenas a clientes localizados em regiões não contempladas pela expansão da malha, o dano à concorrência com gás canalizado não seria materializado.

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