Por Ronaldo Bicalho
As instituições desempenham um papel crucial na evolução do setor de energia e, somadas à tecnologia, estruturam esse conjunto de atividades essenciais para o desenvolvimento econômico e o bem-estar das sociedades modernas.
Essa crucialidade da função institucional introduz a presença do Estado no setor de forma incontornável, quer produzindo, quer regulando, quer definindo políticas públicas. Da atuação direta via estatais até ações externas para garantir a segurança energética, passando por uma ampla gama de ações, o Estado é um jogador fundamental no jogo energético.
Pode-se afirmar, sem sombra de dúvida, que o setor de energia é um dos setores econômicos nos quais a presença do Estado, direta ou indiretamente, é mais forte. Portanto, não é à toa o grande espaço ocupado pela dimensão político-institucional no debate energético.
Nesse sentido, as relações entre as esferas pública e privada percorrem toda a cadeia energética. Da concessão de uma licença ambiental para a construção de uma planta de geração à definição de tarifas, passando pela elaboração de políticas de incentivos/penalizações que envolve o executivo e o legislativo, assim como o recurso ao judiciário para a arbitragem de conflitos de natureza legal, as interações entre agentes públicos e privados pululam no universo da energia.
O reconhecimento da legitimidade e, principalmente, da legalidade desse mundo de interações entre o público e o privado constitui a fundação sobre a qual será erigida o aparato institucional que sustentará a operação e a expansão do sistema energético. Em outras palavras, o mundo da energia se sustenta em uma institucionalidade que se legitima a partir da percepção de que um dado conjunto de relações entre agentes públicos e privados é aceitável, legal e legítimo.
Em situações nas quais essa legitimidade é colocada em xeque, a institucionalidade construída a partir dela se fragiliza e, em consequência, o suprimento energético passa a estar em risco.
Uma das leituras possíveis da crise brasileira dá ênfase a dimensão institucional dessa crise, colocando a criminalização das relações público-privado tradicionais do capitalismo brasileiro, operada pelo Consórcio Ministério Público – Mídia, com a condescendência do judiciário, no centro dinâmico gerador da contínua e incontrolável instabilidade por trás do desastre brasileiro.
Se essa interpretação está correta, os horizontes para o setor energético são extremamente preocupantes.
No livro “A Energia do Brasil”, o professor Antonio Dias Leite apresenta a construção do sistema energético brasileiro. No duro processo de superação dos desafios tecnológicos, econômicos, institucionais e políticos envolvidos nessa construção, está implícito um projeto de industrialização do país, que necessita da energia fornecida por esse sistema para a sua realização.
Assim, pode-se afirmar que o sistema energético brasileiro foi construído em resposta às necessidades do processo de industrialização do país. Esse último demandava energia em quantidade e preço condizentes com sua sustentabilidade econômica que, no limite, implicava energia abundante e barata para o setor industrial nascente.
Se, pelo lado da demanda, a disponibilidade farta e a baixo custo desse insumo impulsionava as atividades econômicas intensivas em energia, pelo lado da oferta, a construção de uma cadeia de fornecedores de equipamentos e serviços, com níveis variados de conteúdo local, impulsionava o surgimento de um conjunto de atividades exercidas em distintos graus por agentes econômicos nacionais.
Com diferentes graus de soberania e autossuficiência, esse projeto se desenvolveu ao longo do tempo e de diversos governos. Há um fio condutor que estrutura o desenvolvimento energético brasileiro a partir dos anos 1930s que não se rompe com os militares em 1964, tampouco com os “neoliberais” dos anos 1990s. Independentemente das distintas colorações políticas, o país construiu um sistema energético robusto, capaz de suportar condições extremas de estresse técnico, econômico e institucional sem se desestruturar completamente, mantendo o suprimento energético necessário à atividade econômica e social do país.
Pode-se afirmar que uma parcela significativa do capitalismo brasileiro se desenvolveu em torno do setor energético, tanto pelo lado da demanda quanto pelo lado da oferta.
No centro desse desenvolvimento é possível encontrar uma determinada relação entre as esferas pública e privada que sintetiza a institucionalidade brasileira que suporta a evolução do capitalismo pátrio.
Neste ponto, algumas considerações são importantes. A primeiras delas diz respeito ao necessário reconhecimento de que a relação entre o público e o privado no capitalismo é uma zona cinzenta, cuja tonalidade varia enormemente ao redor do mundo, em função da diversidade econômica, institucional, cultural e política existente entre os países.
Dessa maneira, cada país, a partir das suas especificidades econômica, institucional, cultural e política define os limites no interior dos quais irão evoluir as relações entre o público e o privado.
O que importa aqui é manter o controle sobre as distorções que surgem a partir da relação entre as esferas pública e privada sem ameaçar os interesses nacionais. São esses interesses, definidos no âmbito dos Estados Nacionais, que estabelecem de fato o controle sobre as relações público/privada no capitalismo.
Embora haja, pela sua própria natureza, sempre a possibilidade de criminalizar essa relação, os limites desse processo devem ser sempre analisados com cuidado, na medida em que o avanço nesse processo de criminalização pode colocar em risco a segurança do Estado Nacional. Servindo muitas vezes a interesses externos que ameaçam a soberania e a autodeterminação dos países.
A criminalização indiscriminada da relação público/privado pode ser um poderoso mecanismo de destruição que tem o potencial de implodir as instituições de um país; liquidando suas empresas, suas cadeias produtivas, sua infraestrutura econômica, ou seja, as bases produtivas, econômicas e sociais sobre as quais repousam qualquer projeto autônomo de desenvolvimento.
Na medida em que a lógica que preside o processo é a da destruição, toda a adesão a ele é feita baseada na possibilidade de usá-lo para destruir o competidor, o adversário político, o desafeto, etc.. Dessa maneira, há uma retroalimentação natural que fortalece cada vez mais o mecanismo e amplia exponencialmente o círculo de destruição. Embora cada membro do consórcio destruidor acredita que controla o processo, ao fim e ao cabo, a destruição alcançará a todos, porque esta é a sua lógica definidora. Por isso, a única racionalidade de um processo “insano” como esse só pode ser encontrada nos interesses externos e naqueles que internamente os representam.
Mecanismos como o descrito acima não são fáceis de montar e implementar. A existência de anticorpos institucionais básicos, em geral, é suficiente para deter este tipo de contaminação. São necessárias condições adversas de degradação institucional muito particulares para que uma contaminação como essa ocorra, se alastre e destrua todo o organismo institucional.
A questão que se coloca é se esse tipo de mecanismo foi montado e está operando no país. No caso de uma resposta afirmativa, a desestruturação institucional seguirá adiante e com ela a insegurança e a incerteza irão se ampliar de forma acachapante. Em um contexto como esse o enfrentamento da pesada agenda energética torna-se impossível.
Em suma, a questão colocada para sucessivas gerações de brasileiros que atuaram no setor de energia do país sempre foi a busca da energia do Brasil; contudo, face o desenrolar dos acontecimentos, esta questão está sendo substituída pela pergunta sobre que Brasil é esse para o qual está se buscando uma solução energética. Ou seja, se até ontem buscávamos a energia para o Brasil, hoje o que estamos buscando é o próprio Brasil. Sem responder a essa última pergunta não há como responder a primeira.
[…] Bicalho, R, “A energia do Brasil: Mas que Brasil?”, Infopetro, 28.11.2016, disponível em https://infopetro.wordpress.com/2016/11/28/a-energia-do-brasil-mas-que-brasil/ […]
Ronaldo, não sei responder às suas perguntas, mas gostaria de adicionar uns poucos pontos concretos que acredito bastante complementares às suas considerações.
Antes porém, quero deixar claro que mesmo com todo o desmonte de nossas tradicionais empresas que há muitos anos constroem nosso parque hidrelétrico, aplaudo as mudanças mais profundas em curso e espero que venham a limpar um pouco nossos sistemas de selecionar projetos e de fazer políticas.
Mas, no setor elétrico, para o bem ou para o mal, o redesenho institucional mexe com nossas alternativas energéticas para o futuro. As hidrelétricas ja tão combatidas por movimentos de opinião publica (certo? errado?…), perderam seus pontos de apoio político, ou seja a Eletrobras e as empreiteiras.
A Eletrobras quase liquidada pela fatídica MP579, que retirou da empresa a renda econômica e deixou todos os vazamentos de caixa e projetos sem TIR em nome da “modicidade tarifária”… está enfrentando uma antiga necessidade de reestruturação que nenhum dos governos das últimas décadas teve coragem de enfrentar; será que vai ser dessa vez? e logo agora que acabou o Ebitda? enfim.. continuo achando que precisamos de um braço do Estado na expansão a longo prazo.. mas isso é uma outra discussão… Mas, em síntese, atualmente para a expansão hidrelétrica de grande porte os atores contrários continuam e os defensores não.
Assim, voltando ao tema, a desestruturação institucional em curso afeta diretamente a opção hidrelétrica e sem expansão hidrelétrica a fundamental manutenção/ampliação de uma matriz limpa irá requerer um enorme esforço das novas renováveis… que felizmente estão barateando e crescendo, mas não sei se serão suficientes.. para chegarmos ao fim do Século sem combustíveis fósseis…
De qualquer modo o campo institucional do setor está inevitavelmente se modificando muito; com as novas renováveis temos também a pulverização dos atores, campo fértil para a inovação, mas mais complexo para a coordenação.
Também, novas regras de jogo precisam ser desenhadas com cuidado, sem esquecer que até hoje não sabemos individualizar direito os custos e benefícios em um sistema com renováveis …, políticas distorcidas como o “net metering” precisam ser evitadas…o redesenho institucional necessário passa por muitas frentes de mudança. Que instituições e que atores?
[…] político/institucional vivida pelo país afeta de forma decisiva o setor elétrico brasileiro (Bicalho, 2016). Na medida em que essa crise fragiliza as bases institucionais do país, a implantaçãode uma […]
[…] Bicalho, R, “A Energia do Brasil: Mas que Brasil?”. INFOPETRO, 28.11.2016. Disponível: https://infopetro.wordpress.com/2016/11/28/a-energia-do-brasil-mas-que-brasil/ […]
[…] Bicalho, R, “A Energia do Brasil: Mas que Brasil?”. INFOPETRO, 28.11.2016. Disponível: https://infopetro.wordpress.com/2016/11/28/a-energia-do-brasil-mas-que-brasil/ […]